24 de fevereiro de 2015
Em busca de
imagens para uma apresentação, dou com a foto, feita em estúdio, de um garoto
de 11 anos de idade chamado Walter Benjamin (1892-1940). Serve de ilustração a
um ensaio que tangencia a relação do filósofo com a fotografia (“Pequena
História da Fotografia”), a infância (“Infância Berlinense por volta de 1900”)
e a infância fotografada (“Franz Kafka – A propósito do décimo aniversário de
sua morte”).
Por Gunnar
Schmidt*. Tradução: Zé Pedro Antunes.
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Fotografar é
com os pais: amor à técnica, olhares sem palavras, gestão. É da moldura que os
pais olham para a cena. Já as mães são guardiãs do significado: ordenação das
imagens, encadernação, legendas. Mães são arquivistas, atribuidoras de sentido.
E a criança? Se lhe faz recordação. A criança cresce, sobre ela se contarão histórias.
À visão das
fotos, situações são evocadas, associações são tecidas: “Olha, é você quando
não sabia ainda quem você era!” Ao contemplar o seu álbum, não imita a criança
o olhar do pai e a linguagem da mãe? Não confere como o pai viu a criança? E não
entende as frases como as prescreveu sua mãe?
O que era
uma vez não lhe retorna como seu, é o olhar, o sentir e o falar dos outros –
dominadores dos aparelhos, poderosos da cultura, criadores de mitos. A partir
de momentos da história, eles idealizam histórias, motivos, convicções.
Selecionam, desejam, esquecem – são os artífices da vida da criança. E a
criança ouve, vê, assimila palavras e imagens, para logo em seguida repeti-las,
revivê-las. Sua história, ela a recebeu sem que a tivesse vivido. É assim que o
Eu se constrói.
Nasce uma
criança. É enfermiça, inapetente. Os pais se preocupam, procuram médicos.
Esforçam-se, ficam aflitos. Mas a criança cresce e fica saudável. Aquele tempo
ficará na recordação como o tempo em que a criança se chamava criança triste.
Uma criança tem que ser alegre. A infância, se diz, é o tempo mais feliz na
vida de um ser humano. Essa é a afirmação romântica de nossa cultura. Por isso,
ele jamais gostou de contemplar suas fotografias de criança, justamente por ter
sido uma criança triste. Falsas imagens de uma infância ou imagens de uma
infância falsa?
Também, mais
tarde, ele acharia especialmente logrados e verdadeiros os instantâneos que mostravam
a criança com uma expressão séria no rosto: símbolo de tristeza sublimada. Como
se sabe, para ele (sem que o suspeitasse) uma foto lograda era aquela que
tornasse a recuperar a melancolia da infância (da criança, dos pais?). Ele, o
corpo, aceitou a história, encenou diante da câmera um passado que lhe viera em
narrativas; criou uma imagem corporal que repetia o mito da criança triste. (Um
acontecimento precoce: Aos 11 anos, a criança posa no estúdio de um fotógrafo,
que, em vão, tenta fazê-la sorrir.)
Salto no
tempo. Todas as imagens da infância foram esquecidas, abandonadas num livro,
enterradas na gaveta de um armário grande. O álbum surrado não mais lhe caíra
nas mãos. Só depois de anos e anos é que imagens isoladas lhe vêm à mente, e de
novo lhe ocorrem as alegorias da melancolia. Não o acontecimento, o momento
histórico, o contexto do qual brotou a imagem, não a foto como suporte a evocar
uma vivência passada. A imagem é mônada, na qual um imaginário se plastifica,
uma fixação. A imagem rememorada não representa um passado (do qual ele já não
sabe mais nada). De narrável, ela nada mais contém, é espelho de uma situação –
tempo suprimido.
Com essa
fotografia imaginada em mente, ele procura pelo álbum de criança, para,
finalmente, se deparar com esta ou aquela imagem. Não o traíra a recordação, a
criança séria existiu, as provas ali estavam. E no entanto, ao folhear o álbum,
constata que em muitas delas a criança lança ao mundo um olhar de contentamento
pleno. Fissura na percepção: Antes só conseguia ver a criança ‘malograda’,
agora vê a criança normal, uma criança que ri, que está ocupada, a postos para
os fotógrafos.
Mas o que
foi esse mito da criança séria-melancólica? Uma ilusão, uma construção
preservada, um recorte que se tornara universal? Dele se apodera a suspeita de
que o álbum representa uma conjura, com a qual se pretendia banir a triste
experiência com uma criança preocupada e preocupante. A convenção da imagem faz
do cotidiano uma coleção de momentos felizes: Natal, brinquedos, aniversário,
presentes.
Questão da
verdade: Qual recordação está mentindo?
Ele consegue
discernir um critério, distinguindo no álbum duas espécies de imagens:
fotografias de recordação e fotografias do Eu (suas imagens recordadas).
Imagens da recordação o conduzem de volta a uma cena, a acontecimentos. Ao
contemplá-las, surgem relatos, comentários, narrativas; dramas, enredos são
evocados. Fotos do Eu mostram autoimagens. Como os stils de um filme cujo
contexto se perdeu. Nelas, ele é Eu fixado, figura, personagem. Nem ator nem
história. Imagens cujo sentido veio de fora, de contextos alheios à cena
fotográfica. A foto do Eu é metáfora, alegoria, arquétipo individual – não é
narrável. Nelas não se dá a ver senão uma identidade estilizada, um clichê: a
criança triste.
Os dois
tipos de imagem possuem memórias com estruturas e conteúdos diferentes. A foto
de recordação subjaz à estratégia da construção: a ela se incorpora o relato do
passado com suas figuras de estilo (p. ex. sentimentalização, heroicização,
humor), ofuscamentos, excessos, marginalizações. É romance.
A foto do
Eu, ao contrário, aporta para a zona de pressentimento coisas inconscientes. Ela
contém atribuições amarradas, condensadas, não descarregadas, que nela se
sedimentaram. Nela ele se vê como alguém que quase se tornou, mas que de
tornar-se se viu alijado. É poesia. Ou sintoma, reflexo narcísico. Parece
conter uma garantia, a qual – paradoxalmente – carece de fundamento. “Sou eu, é
verdade”, diz o observador, mas sem saber de onde está a extrair essa certeza.
Lúdica se apresenta, ao contrário, a imagem da recordação, a oferecer um papel
num episódio; ela demanda tempo, início e fim. Em sua interpretação se
qualificam os eventos descortinados: algo era belo, impressionante, perigoso,
excitante etc. A autoimagem narcísica desconhece tal qualificação. O corpo, a
expressão, a postura – tudo é símbolo de uma existência sem antes nem depois,
sem mutabilidade.
Não sabemos
dizer se nós é que fazemos as imagens ou se as imagens é que nos fazem. A
memória das imagens (olhar paterno?) e a memória do Eu (língua materna?) – elas
se confundem, se mesclam, mudam de posição. E de um lugar qualquer provém um
discurso, que em nós ressoa, e ao qual queremos dar crença. Poder unificador:
esse discurso quer significar para nós o que desde sempre fomos. Mas tornamos a
contemplar a coleção de imagens e não vemos esse um. Duvidar da crença, é isso
que nos ocorre, pois vemos: imagem após imagem após imagem... o Eu
multiplicado, estranho.
A fotografia
se torna crítica quando, na série da figura que se transforma, a visão da
antiga autoimagem se torna alheia: Isso fui eu, isso fui eu, isso fui eu – mas
eu não me recordo. E assim começamos uma vez mais a nos perguntar pelo que
somos. A meditação sobre a própria imagem na fotografia é perda e reflexão da
identidade.
(*) Gunnar
Schmidt estudou Anglística, Politologia e Pedagogia. Diplomado pela
Universidade de Hamburgo, trabalha na confluência de três grandes áreas:
Comunicação, Cultura e Literatura. Desde 2009 é docente na Escola Superior de
Trier, atuando na área de Intermidia Design (Teoria e Praxis da
Intermediação).
Fonte: medien aesthetik
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