domingo, 28 de junho de 2015

Romance familiar – poesia familiar

24 de fevereiro de 2015

Em busca de imagens para uma apresentação, dou com a foto, feita em estúdio, de um garoto de 11 anos de idade chamado Walter Benjamin (1892-1940). Serve de ilustração a um ensaio que tangencia a relação do filósofo com a fotografia (“Pequena História da Fotografia”), a infância (“Infância Berlinense por volta de 1900”) e a infância fotografada (“Franz Kafka – A propósito do décimo aniversário de sua morte”).

Por Gunnar Schmidt*. Tradução: Zé Pedro Antunes.

________________________


Fotografar é com os pais: amor à técnica, olhares sem palavras, gestão. É da moldura que os pais olham para a cena. Já as mães são guardiãs do significado: ordenação das imagens, encadernação, legendas. Mães são arquivistas, atribuidoras de sentido. E a criança? Se lhe faz recordação. A criança cresce, sobre ela se contarão histórias.

À visão das fotos, situações são evocadas, associações são tecidas: “Olha, é você quando não sabia ainda quem você era!” Ao contemplar o seu álbum, não imita a criança o olhar do pai e a linguagem da mãe? Não confere como o pai viu a criança? E não entende as frases como as prescreveu sua mãe?

O que era uma vez não lhe retorna como seu, é o olhar, o sentir e o falar dos outros – dominadores dos aparelhos, poderosos da cultura, criadores de mitos. A partir de momentos da história, eles idealizam histórias, motivos, convicções. Selecionam, desejam, esquecem – são os artífices da vida da criança. E a criança ouve, vê, assimila palavras e imagens, para logo em seguida repeti-las, revivê-las. Sua história, ela a recebeu sem que a tivesse vivido. É assim que o Eu se constrói.

Nasce uma criança. É enfermiça, inapetente. Os pais se preocupam, procuram médicos. Esforçam-se, ficam aflitos. Mas a criança cresce e fica saudável. Aquele tempo ficará na recordação como o tempo em que a criança se chamava criança triste. Uma criança tem que ser alegre. A infância, se diz, é o tempo mais feliz na vida de um ser humano. Essa é a afirmação romântica de nossa cultura. Por isso, ele jamais gostou de contemplar suas fotografias de criança, justamente por ter sido uma criança triste. Falsas imagens de uma infância ou imagens de uma infância falsa?




Também, mais tarde, ele acharia especialmente logrados e verdadeiros os instantâneos que mostravam a criança com uma expressão séria no rosto: símbolo de tristeza sublimada. Como se sabe, para ele (sem que o suspeitasse) uma foto lograda era aquela que tornasse a recuperar a melancolia da infância (da criança, dos pais?). Ele, o corpo, aceitou a história, encenou diante da câmera um passado que lhe viera em narrativas; criou uma imagem corporal que repetia o mito da criança triste. (Um acontecimento precoce: Aos 11 anos, a criança posa no estúdio de um fotógrafo, que, em vão, tenta fazê-la sorrir.)

Salto no tempo. Todas as imagens da infância foram esquecidas, abandonadas num livro, enterradas na gaveta de um armário grande. O álbum surrado não mais lhe caíra nas mãos. Só depois de anos e anos é que imagens isoladas lhe vêm à mente, e de novo lhe ocorrem as alegorias da melancolia. Não o acontecimento, o momento histórico, o contexto do qual brotou a imagem, não a foto como suporte a evocar uma vivência passada. A imagem é mônada, na qual um imaginário se plastifica, uma fixação. A imagem rememorada não representa um passado (do qual ele já não sabe mais nada). De narrável, ela nada mais contém, é espelho de uma situação – tempo suprimido.

Com essa fotografia imaginada em mente, ele procura pelo álbum de criança, para, finalmente, se deparar com esta ou aquela imagem. Não o traíra a recordação, a criança séria existiu, as provas ali estavam. E no entanto, ao folhear o álbum, constata que em muitas delas a criança lança ao mundo um olhar de contentamento pleno. Fissura na percepção: Antes só conseguia ver a criança ‘malograda’, agora vê a criança normal, uma criança que ri, que está ocupada, a postos para os fotógrafos.

Mas o que foi esse mito da criança séria-melancólica? Uma ilusão, uma construção preservada, um recorte que se tornara universal? Dele se apodera a suspeita de que o álbum representa uma conjura, com a qual se pretendia banir a triste experiência com uma criança preocupada e preocupante. A convenção da imagem faz do cotidiano uma coleção de momentos felizes: Natal, brinquedos, aniversário, presentes.
Questão da verdade: Qual recordação está mentindo?

Ele consegue discernir um critério, distinguindo no álbum duas espécies de imagens: fotografias de recordação e fotografias do Eu (suas imagens recordadas). Imagens da recordação o conduzem de volta a uma cena, a acontecimentos. Ao contemplá-las, surgem relatos, comentários, narrativas; dramas, enredos são evocados. Fotos do Eu mostram autoimagens. Como os stils de um filme cujo contexto se perdeu. Nelas, ele é Eu fixado, figura, personagem. Nem ator nem história. Imagens cujo sentido veio de fora, de contextos alheios à cena fotográfica. A foto do Eu é metáfora, alegoria, arquétipo individual – não é narrável. Nelas não se dá a ver senão uma identidade estilizada, um clichê: a criança triste.

Os dois tipos de imagem possuem memórias com estruturas e conteúdos diferentes. A foto de recordação subjaz à estratégia da construção: a ela se incorpora o relato do passado com suas figuras de estilo (p. ex. sentimentalização, heroicização, humor), ofuscamentos, excessos, marginalizações. É romance.

A foto do Eu, ao contrário, aporta para a zona de pressentimento coisas inconscientes. Ela contém atribuições amarradas, condensadas, não descarregadas, que nela se sedimentaram. Nela ele se vê como alguém que quase se tornou, mas que de tornar-se se viu alijado. É poesia. Ou sintoma, reflexo narcísico. Parece conter uma garantia, a qual – paradoxalmente – carece de fundamento. “Sou eu, é verdade”, diz o observador, mas sem saber de onde está a extrair essa certeza. Lúdica se apresenta, ao contrário, a imagem da recordação, a oferecer um papel num episódio; ela demanda tempo, início e fim. Em sua interpretação se qualificam os eventos descortinados: algo era belo, impressionante, perigoso, excitante etc. A autoimagem narcísica desconhece tal qualificação. O corpo, a expressão, a postura – tudo é símbolo de uma existência sem antes nem depois, sem mutabilidade.

Não sabemos dizer se nós é que fazemos as imagens ou se as imagens é que nos fazem. A memória das imagens (olhar paterno?) e a memória do Eu (língua materna?) – elas se confundem, se mesclam, mudam de posição. E de um lugar qualquer provém um discurso, que em nós ressoa, e ao qual queremos dar crença. Poder unificador: esse discurso quer significar para nós o que desde sempre fomos. Mas tornamos a contemplar a coleção de imagens e não vemos esse um. Duvidar da crença, é isso que nos ocorre, pois vemos: imagem após imagem após imagem... o Eu multiplicado, estranho.

A fotografia se torna crítica quando, na série da figura que se transforma, a visão da antiga autoimagem se torna alheia: Isso fui eu, isso fui eu, isso fui eu – mas eu não me recordo. E assim começamos uma vez mais a nos perguntar pelo que somos. A meditação sobre a própria imagem na fotografia é perda e reflexão da identidade.

(*) Gunnar Schmidt estudou Anglística, Politologia e Pedagogia. Diplomado pela Universidade de Hamburgo, trabalha na confluência de três grandes áreas: Comunicação, Cultura e Literatura. Desde 2009 é docente na Escola Superior de Trier, atuando na área de Intermidia Design (Teoria e Praxis da Intermediação). 



Nenhum comentário:

Postar um comentário