terça-feira, 9 de junho de 2015

Guerra civil nos nervos

8 de junho de 2015

Sexo, valium, cocaína, vinho, cerveja... Rainer Werner Fassbinder morreu com apenas 37 anos de idade. Mas: Seu caixão estava vazio, opina Alexander Kluge, o companheiro não está morto. Seis recordações pelo 70º aniversário do gênio.
[Por Alexander Kluge. Tradução: Zé Pedro Antunes.]


No domingo, 31 de maio de 2015, 70 anos depois do final da 2a. Guerra Mundial, Rainer Werner Fassbinder completaria 70 anos. Ele não é um tipo para essa faixa de idade. Tivesse sobrevivido a seu ano de crise, 1982 (e aos que certamente ainda se seguiriam), e estivesse agora a comemorar conosco, teria acabado de terminar, suponho, seu 182º filme. Fazem falta esses filmes. Sobretudo sinto a falta do companheiro. De uma coisa eu tenho certeza: seu caixão estava vazio.



Uma promessa

Ao sol da tarde, repousávamos no jardim de um hotel, no Lido. Até a sessão das 19 horas no Palácio do Festival não havia o que fazer. Fassbinder escarrapachado na grama. Syberberg explicava seu filme mais recente. “Zeit zum Verlieren. Entediávamo-nos. Nessa hora de sol pleno, abrangente, R. W. Fassbinder e eu fizemos um ao outro um juramento: quem sobrevivesse daria continuidade ao trabalho do outro. Se necessário, deveria inventar histórias a seu respeito ou falsificar filmes. Com isso, o desaparecido não estaria inteiramente morto.

Festiva e reciprocamente, com o “corpo tostado” (mas que será pele queimada), demo-nos a permissão de copiar da obra um do outro. Syberberg foi testemunha.


Das marcações a lápis branco ele não tinha como saber

A contribuição de Rainer Werner Fassbinder em “Alemanha no outono”, o segundo episódio do filme, estava longa demais. Com lápis branco, Beate Mainka-Jellinghaus marcou na cópia de trabalho as passagens que deveriam ser cortadas.

Fassbinder apareceu. Ao lado da mesa de montagem, preparou algumas carreiras de pó. Assim turbinado, ele se lançou ao trabalho. E aliás cortando o filme sempre nos momentos em que admitia uma abreviação.

Pois elas coincidiram exatamente com os pontos assinalados por Beate Mainka-Jellinghaus. Das marcações a lápis branco ele não tinha como saber.


O papel da mãe

No ano de 1978, combinamos, R. W. Fassbinder e eu, produzir um filme sobre a separação de nossos pais. Fassbinder passou então a ocupar-se com outros projetos, em vez dar início comigo a esse filme para o qual nossas equipes se prepararam. Não conseguia decidir se escalava, no papel de sua mãe no conflito matrimonial, sua mãe verdadeira (que na verdade era uma atriz), mas também achava impossível, em vez disso, confiar o papel a uma atriz de sua equipe.



Nascido em maio de 1945

Peter Berling, o biógrafo de Fassbinder e seu antigo produtor, que vive em Roma, observa, sobre o fato de Fassbinder não ter passado dos 37 anos de vida, que, no caso dos gênios que não vão além dos 34 ou 35 (como Mozart e Bellini), o cerne gravitacional de suas fantasias perpétuas repousa nos cinco anos antes e nos cinco anos depois do seu nascimento.

Isso, de acordo com esse biógrafo, pode ter relação com sons, histórias contadas, ritmos, enfim, com todas as percepções que uma criança consegue captar, portanto também com roupas, cortinas tremulantes ou a direção do olhar da mãe; e, aliás, não porque essas crianças teriam experimentado, elas próprias, o que quer que fosse dos acontecimentos exteriores do mundo naquele período antes e depois do nascimento, mas porque milhares de impressões se transmitiram na voz e na expressão facial de seus pais: a infinita narrativa que acompanha os anos de uma relação simbiótica.

Fato extraordinário: Rainer Werner Fassbinder foi tirado de sua mãe quando ainda era uma criança de quatro meses. O pai, ele o terá visto muito raramente, e depois absolutamente não mais. É a pura nostalgia, carência de proximidade original com os pais, que torna os seus filmes tão clarividentes.


Gargalo da vida

De março a junho de 1982, a vida de Rainer Werner Fassbinder encontrava-se num gargalo. Na ópera, gargalo se diz um ‘stretto’. Ela finaliza atos e muitas vezes plasma o final.

A aproximação entre Rainer Werner Fassbinder e Andy Warhol em Nova Iorque foi mutuamente vantajosa. Razão pela qual Warhol também se dispôs a projetar o cartaz de “Querelle”. Um cartaz como esse era, por um lado, obra de arte autônoma e com potencial de mercado, sendo ao mesmo tempo um adequado meio de divulgação. O encontro com Fassbinder, tido como “selvagem”, foi para Warhol, que era mais velho e se pusera mais tranquilo, tendo deixado as drogas e o álcool, e se tornado mais cuidadoso em suas relações íntimas, um valioso bem público.

Ao civilista Warhol, causou-lhe irritação o culote de linho, no padrão leopardo dos militares, com que Fassbinder foi visitá-lo. Era o figurino de um filme no qual assumira um papel secundário, um traje casual. Warhol relacionou a vestimenta consigo próprio. Viu nela uma grande generalização, um preconceito, uma alusão ao fato de pessoas homoeróticas deixarem se prender por certos trajes marciais ou acessórios, quando, na verdade, sua capacidade de distinção, os nuançamentos, eram antes mais fortemente acentuados do que nos heterossexuais. Em geral, ele percebia como descortês esse exageramento da musculatura das coxas (pernas de jóquei) com o uso de culotes.

Fassbinder, ainda sonolento, não falou nada. Rápido se despediram, antes afinal de terem se cumprimentado. Fassbinder ficou então horas sentado num café, a pesquisar os anúncios de garotos de programa em algumas publicações especializadas.

A posteriori, muitos apontaram os dias em Nova Iorque como sendo o gargalo, e então, no dia 31 de maio de 1982, a triste cerimônia de aniversário na sauna “Deutsche Eiche”. Num filme mudo dos anos vinte, veem-se paredes nas quais as cenas sucessivamente vão se estreitando. Por fim, naquele espaço não há mais lugar algum para as pessoas. As paredes vão comprimindo a cena.

A generosa práxis sexual a que Fassbinder se entregara nos dez anos precedentes, para suportar as coisas, chegou ao fim com o surgimento do HIV. Em março de 1982, era ainda de ouvir dizer; um ano depois, Fassbinder teria sido vítima da onda de infecções. O jovem cinema alemão, no gargalo com a bancarrota dos cinemas nos centros das grandes cidades, em consequência do preço dos aluguéis. Mais fortemente ainda levando ao estreitamento a insolvência de seu corpo. Valium, Vesparax, Captagon, a droga, vinho, cerveja – guerra civil nos nervos. Fassbinder morreu antes que a stretta lhe apontasse o fim.

Boletim diário sobre o projeto paralelo: “Guerra e Paz” (não filmado)

No final de semana que se seguiria a sua morte, Rainer Werner Fassbinder tinha a intenção de encenar seu episódio no filme “Guerra e Paz”. O que ele pretendia foi discutido em cinco encontros. Uma vez que ele trabalhava de modo incomumente preciso, era possível deixar rodar diante dos olhos do espírito esse episódio que estaria destinado a abrir o projeto coletivo. Na noite em que Fassbinder morreu, eu terminei de montar a sequência final. Essa deveria ser a sequência 2. Eu terminara mais ou menos por volta da meia-noite.

A história de Fassbinder: um homem e uma mulher que praticam o ato sexual. Inexplicável: uma idée fixe, que toma conta deles, impede que prossigam. Da incapacidade de prosseguir decorre uma briga. Essa briga leva o outro a um desfecho mortal.

Paralelamente a essa narrativa cênica, Fassbinder queria incluir um diálogo com sua mãe. Como, no caso, tem que proceder experimentalmente, não sugeriu nenhum resultado. Mas para ele tratava-se de um ferimento: Quanto de acaso e quão pouco de necessidade compunha aquela união da qual ele surgira? O que afinal tinham os pais a ver um com o outro? Quão abrangente precisa ser a obra que alguém filma ou compõe com a finalidade de estabelecer, a posteriori, os laços que jamais uniram os pais verdadeiros? “Todos os motivos melodramáticos são póstumos.” (Se semelhante ou diferente disso, em todo caso foi assim que o entendi.)

Para compor as duas partes de sua sequência, Fassbinder leu exaustivamente o primeiro capítulo do livro “Da Guerra” de Clausewitz. Esse primeiro capítulo, “O que é a guerra?”, trata da explosão passional, do sentimento hostil, dos três componentes, do devaneio lógico, da impossibilidade de um só golpe sem duração, dos graus mais elevados da paixão, da natureza subjetiva da guerra, que só se assemelha ao jogo de cartas, da astuta, desonesta inteligência da guerra, do seu caráter camaleônico, da manifestação da vontade alheia, da “violência para compelir o inimigo a fazer a nossa vontade...”

É claro que R. W. Fassbinder queria colocar algo assim em jogo na esfera íntima. Eu tinha a convicção de que a sequência teria sido substancialmente mais longa do que a que ele filmara para “Alemanha no outono” (1977).


“Se imaginarmos o Novo Cinema Alemão alegoricamente como um ser humano, então Kluge seria a cabeça, Herzog a vontade, Wenders o olho, Schlöndorff as mãos e os pés, et tutti quanti isso e mais aquilo; mas Fassbinder teria sido o coração (não no sentido político ou como ponto de equilíbrio, mas como centro gravitacional, no qual se cruzavam as respectivas tendências artísticas).” Wolfram Schütte, Frankfurter Rundschau, 19. Juni 1982

O texto original traz, em vídeo, um depoimento do biógrafo Peter Berling, o episódio de “Alemanha no outono” (Fassbinder contracena com a mãe) e material sobre o primeiro filme (relação com o Grupo Baader-Meinhof). Em: http://www.spiegel.de/kultur/gesellschaft/alexander-kluge-zu-rainer-werner-fassbinder-nicht-ganz-tot-a-1033586.html


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