20 de janeiro de 2015
por José Pedro Antunes
por José Pedro Antunes
Sei de pessoas que acham
difícil, senão impossível, encontrar o riso em Kafka. Outras discordam mesmo
terminantemente de uma leitura pelo viés do humor. Humor que, segundo Polanski,
para poloneses e tchecos é o modo natural de se ler Kafka. Humor do qual os
dirigentes comunistas muito certamente se davam conta, mas as obras de Kafka
não correspondiam às exigências do realismo socialista.
Mas não pense o leitor que eu
mesmo não tenha momentos de hesitação diante dos achados que tenho feito e
veiculado em nome da possibilidade de uma leitura que leve em conta o riso em
Kafka. Cada novo livro a respeito acabará por nos obrigar a rever tudo o que já
tínhamos como sabido ou pensado. Eu mesmo me vejo em meio à leitura de um
cerrado ensaio filosófico. Em “K.”, esse o título da obra, o italiano Roberto
Calasso lê “O Processo” e “O Castelo” como sendo “quase” o mesmo romance.
Não que ele não leve em conta
o cômico, aqui e ali evidente nas obras em apreço e nas demais narrativas de
Kafka. Ele o faz sem descurar de todos os outros aspectos, de modo a promover a
convivência das mais variadas vertentes interpretativas. E essa seria uma
resposta a quem possa ter discordado do que eu dizia e das vozes que eu citava
no artigo de quarta passada. Não se trata de estabelecer uma nova interpretação
acima de todas as outras, mas de afirmá-la igualmente possível, defendê-la para
que não pereça em detrimento das demais.
Thomas Mann, por exemplo, precisou
de vários adjetivos, chegando mesmo a acoplar dois deles, ‘cômico-onírico’,
para qualificar um ‘entretenimento’ literário. Foi no Frankfurter Zeitung, aos
19 de junho de 1927, portanto, no calor do lançamento póstumo promovido por Max
Brod: “De
pronto me ocorrem algumas coisas, dos últimos anos, que em mim produziram um efeito bastante agradável: os livros de
Franz Kafka, por exemplo, imagens visceralmente peculiares, de um cuidado
sublime, das narrativas breves ao fôlego das fantasias de ‘O Processo’ e ‘O
Castelo’ – atemorizante, cômico-onírico, de uma fidelidade magistral e doentio,
o entretenimento mais estranhamente instigante que se pode imaginar.”
Nos anos 1990, um outro
escritor alemão, Herbert Achterbusch, faz a sua tentativa: “Em Kafka eu encontro
aquela excitabilidade dominical de antes do almoço. Não, simplesmente isso, ele
está sempre bem-humorado ao escrever.” Seu pressuposto: a necessária
dissociação de obra e biografia do autor, que, em se tratando de Kafka,
concordo, sempre exigirá um esforço suplementar. Por exemplo, à leitura da
seguinte afirmação biográfica: “Nas últimas semanas antes de sua morte, Kafka
muitas vezes não consegue ingerir alimentos e nem falar. Comunica-se escrevendo
em páginas de caderno, lê as notas da revisão para sua derradeira publicação (“Um
artista da fome”) e observa o progresso da enfermidade.”
Ou tomemos um desses
aforismos que circulam pela internet: “O verdadeiro caminho passa por uma
corda, que está esticada não no alto, mas logo acima do chão. Parece destinada
mais a fazer tropeçar do que a ser palmilhada.” É claro, ninguém vai reagir com
uma gargalhada. Mas seria possível lê-lo como a escrita imagética,
ideogramática, de alguém que por pouco não abandona a literatura para se
dedicar inteiramente ao desenho.
É do próprio Kafka, em carta
a Felice Bauer, a afirmação que pode nos levar adiante neste debate: “Que tal o
meu desenho? Sabe, eu fui uma vez um grande desenhista, só que comecei a
aprender a desenhar, escolarmente, com uma pintora ruim, e meu talento inteiro
ficou arruinado. Pensa bem! Mas espera, vou te enviar a seguir alguns desenhos
antigos, para que tenha algo com que possa dar risada. Esses desenhos, a seu
tempo, já lá se vão anos, me satisfizeram mais do que qualquer outra coisa.”
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