quinta-feira, 25 de junho de 2015

Era uma vez um grande desenhista

20 de janeiro de 2015
por José Pedro Antunes

Sei de pessoas que acham difícil, senão impossível, encontrar o riso em Kafka. Outras discordam mesmo terminantemente de uma leitura pelo viés do humor. Humor que, segundo Polanski, para poloneses e tchecos é o modo natural de se ler Kafka. Humor do qual os dirigentes comunistas muito certamente se davam conta, mas as obras de Kafka não correspondiam às exigências do realismo socialista.

Mas não pense o leitor que eu mesmo não tenha momentos de hesitação diante dos achados que tenho feito e veiculado em nome da possibilidade de uma leitura que leve em conta o riso em Kafka. Cada novo livro a respeito acabará por nos obrigar a rever tudo o que já tínhamos como sabido ou pensado. Eu mesmo me vejo em meio à leitura de um cerrado ensaio filosófico. Em “K.”, esse o título da obra, o italiano Roberto Calasso lê “O Processo” e “O Castelo” como sendo “quase” o mesmo romance.

Não que ele não leve em conta o cômico, aqui e ali evidente nas obras em apreço e nas demais narrativas de Kafka. Ele o faz sem descurar de todos os outros aspectos, de modo a promover a convivência das mais variadas vertentes interpretativas. E essa seria uma resposta a quem possa ter discordado do que eu dizia e das vozes que eu citava no artigo de quarta passada. Não se trata de estabelecer uma nova interpretação acima de todas as outras, mas de afirmá-la igualmente possível, defendê-la para que não pereça em detrimento das demais.

Thomas Mann, por exemplo, precisou de vários adjetivos, chegando mesmo a acoplar dois deles, ‘cômico-onírico’, para qualificar um ‘entretenimento’ literário. Foi no Frankfurter Zeitung, aos 19 de junho de 1927, portanto, no calor do lançamento póstumo promovido por Max Brod: “De pronto me ocorrem algumas coisas, dos últimos anos, que em mim produziram um efeito bastante agradável: os livros de Franz Kafka, por exemplo, imagens visceralmente peculiares, de um cuidado sublime, das narrativas breves ao fôlego das fantasias de ‘O Processo’ e ‘O Castelo’ – atemorizante, cômico-onírico, de uma fidelidade magistral e doentio, o entretenimento mais estranhamente instigante que se pode imaginar.”

Nos anos 1990, um outro escritor alemão, Herbert Achterbusch, faz a sua tentativa: “Em Kafka eu encontro aquela excitabilidade dominical de antes do almoço. Não, simplesmente isso, ele está sempre bem-humorado ao escrever.” Seu pressuposto: a necessária dissociação de obra e biografia do autor, que, em se tratando de Kafka, concordo, sempre exigirá um esforço suplementar. Por exemplo, à leitura da seguinte afirmação biográfica: “Nas últimas semanas antes de sua morte, Kafka muitas vezes não consegue ingerir alimentos e nem falar. Comunica-se escrevendo em páginas de caderno, lê as notas da revisão para sua derradeira publicação (“Um artista da fome”) e observa o progresso da enfermidade.”

Ou tomemos um desses aforismos que circulam pela internet: “O verdadeiro caminho passa por uma corda, que está esticada não no alto, mas logo acima do chão. Parece destinada mais a fazer tropeçar do que a ser palmilhada.” É claro, ninguém vai reagir com uma gargalhada. Mas seria possível lê-lo como a escrita imagética, ideogramática, de alguém que por pouco não abandona a literatura para se dedicar inteiramente ao desenho.


É do próprio Kafka, em carta a Felice Bauer, a afirmação que pode nos levar adiante neste debate: “Que tal o meu desenho? Sabe, eu fui uma vez um grande desenhista, só que comecei a aprender a desenhar, escolarmente, com uma pintora ruim, e meu talento inteiro ficou arruinado. Pensa bem! Mas espera, vou te enviar a seguir alguns desenhos antigos, para que tenha algo com que possa dar risada. Esses desenhos, a seu tempo, já lá se vão anos, me satisfizeram mais do que qualquer outra coisa.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário