terça-feira, 7 de julho de 2015

Como Kafka leu Walser

31 de março de 2015

[Entre 2006 e 2007, uma exposição itinerante sobre Robert Walser ocupou a Galeria Klementinum da Biblioteca Nacional de Praga, cidade onde o escritor suíço teve leitores como Kafka e Max Brod. O excerto de um texto informativo sobre a exposição, de Walter Labhart, introduz aqui a narrativa de Walser à qual ele nos remete. Tradução: Zé Pedro Antunes.]   

Em 1907, leitor da revista literária Neue Rundschau, Kafka topou pela primeira vez com Aufsätze, de Robert Walser, com quem sentiu “uma íntima afinidade”. “Gebirgshallen”, esboço em prosa sobre o homônimo teatro de variedades em Berlim, estava entre seus preferidos, tendo-o inspirado a produzir a narrativa breve “Na Galeria”. Max Brod inclui essa miniatura em sua biografia, para demonstrar “o quanto Kafka fora influenciado pelo estilo de Walser em algumas de suas narrativas breves”.

De Walser a biblioteca de Kafka abrigava as primeiras edições de Aufsätze (Redações, 1913), Geschichten (Histórias, 1914) e Poetenleben (Vida de Poeta, 1918). Em 1910, ele presenteara Max Brod com um exemplar de Jakob von Gunten. Sobre o entusiasmo de Kafka por Walser, Brod afirma: “Às vezes ele irrompia inesperadamente em minha residência, só porque havia encontrado algo de novo, de grandioso. Foi assim com o romance-diário Jakob von Gunten, foi assim com as peças em prosa, pelas quais nutria uma paixão incomum.”


Gebirgshallen

Conhece o Gebirgshallen, na Unter den Linden? Talvez um dia possa dar uma ida até lá. A entrada custa só trinta peniques. Se calhar de ver a moça do caixa comendo pão ou salsicha, não precisa dar meia volta incomodado, trate logo de considerar que é hora do lanche, que ali vai sendo devorado. Em toda parte a natureza reclama seus direitos. Onde há natureza, há sentido. E aí você dará entrada na Montanha [Gebirge]. Onde uma grande figura, uma espécie de ogro bonachão, virá ao teu encontro. É o proprietário do estabelecimento, e fará bem em saudá-lo abanando o chapéu. Ele vê isso com bons olhos, e com bravura te será grato pela gentileza, meio que ameaçando levantar-se da cadeira em que está sentado. No imo d’alma adulado, aproxime-se da geleira, é esse o palco, uma raridade geológica, geográfica e arquitetônica. Assim que tiver tomado assento, receberá ofertas de bebida de uma quiçá sofrivelmente vistosa garçonete. Há que dar-se por satisfeito com o que ali se apresenta. Tampouco nas soirées do Kammerspiel [teatro de câmara] se verá borbotar a feminina finesse. Fique atento para não agrupar ao redor de sua pessoa pagante demasiados copos cheios de sidra trazidos e lançados. As moças gostam de se aproximar de cavalheiros que demonstram compaixão para com elas. Compaixão é inconveniente nas degustações artísticas. Atentou agora para essa bailarina? Kleist também teve de aguardar anos a fio por reconhecimento. Bate palmas com força, ainda que ela quase tenha te desagradado. Que é do teu cajado? Deixou em casa? No Gebirge, da próxima vez, e para todos os casos, convém aparecer, bem ou mal, esportivamente aparatado. Seguro morreu de velho. Que excitante princesa alpina saltita em tua direção? Essa é a Pequena. De você ela quer um cheio até a borda por quinze peniques. Conseguirá resistir a esses lábios, a esses olhos, a esse doce, estúpido pedido? Lamentaria por você, se o conseguisse. De novo se abre, agora, a fenda na geleira, que é o palco, e, a poder de sons e níveos flocos de graça, uma cançonetista dinamarquesa te porá a funcionar. Você agora bebe um gole do seu morno leite de vaca montanheza. O proprietário percorre o local em criterioso bota-fora. Ele zela pela decência e pelo bom comportamento. Não deixe de ir, é o que eu te digo, não deixe! Pode ser que um dia volte a me encontrar. Mas eu, em absoluto, não te terei reconhecido; fascinado por mágicos poderes, costumo permanecer quieto no meu canto. Nele eu sacio a minha sede, melodias me acalentam, eu sonho.



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