31 de março de 2015
[Entre 2006 e 2007, uma
exposição itinerante sobre Robert Walser ocupou a Galeria Klementinum da
Biblioteca Nacional de Praga, cidade onde o escritor suíço teve leitores como
Kafka e Max Brod. O excerto de um texto informativo sobre a exposição, de
Walter Labhart, introduz aqui a narrativa de Walser à qual ele nos remete.
Tradução: Zé Pedro Antunes.]
Em 1907, leitor da revista
literária Neue Rundschau, Kafka topou pela primeira vez com Aufsätze, de Robert
Walser, com quem sentiu “uma íntima afinidade”. “Gebirgshallen”, esboço em
prosa sobre o homônimo teatro de variedades em Berlim, estava entre seus
preferidos, tendo-o inspirado a produzir a narrativa breve “Na Galeria”. Max
Brod inclui essa miniatura em sua biografia, para demonstrar “o quanto Kafka
fora influenciado pelo estilo de Walser em algumas de suas narrativas breves”.
De Walser a biblioteca de
Kafka abrigava as primeiras edições de Aufsätze (Redações, 1913), Geschichten
(Histórias, 1914) e Poetenleben (Vida de Poeta, 1918). Em 1910, ele presenteara
Max Brod com um exemplar de Jakob von Gunten. Sobre o entusiasmo de Kafka por
Walser, Brod afirma: “Às vezes ele irrompia inesperadamente em minha
residência, só porque havia encontrado algo de novo, de grandioso. Foi assim
com o romance-diário Jakob von Gunten, foi assim com as peças em prosa, pelas
quais nutria uma paixão incomum.”
Conhece o Gebirgshallen, na Unter
den Linden? Talvez um dia possa dar uma ida até lá. A entrada custa só trinta
peniques. Se calhar de ver a moça do caixa comendo pão ou salsicha, não precisa
dar meia volta incomodado, trate logo de considerar que é hora do lanche, que
ali vai sendo devorado. Em toda parte a natureza reclama seus direitos. Onde há
natureza, há sentido. E aí você dará entrada na Montanha [Gebirge]. Onde uma
grande figura, uma espécie de ogro bonachão, virá ao teu encontro. É o
proprietário do estabelecimento, e fará bem em saudá-lo abanando o chapéu. Ele
vê isso com bons olhos, e com bravura te será grato pela gentileza, meio que
ameaçando levantar-se da cadeira em que está sentado. No imo d’alma adulado,
aproxime-se da geleira, é esse o palco, uma raridade geológica, geográfica e
arquitetônica. Assim que tiver tomado assento, receberá ofertas de bebida de
uma quiçá sofrivelmente vistosa garçonete. Há que dar-se por satisfeito com o
que ali se apresenta. Tampouco nas soirées do Kammerspiel [teatro de câmara] se
verá borbotar a feminina finesse. Fique atento para não agrupar
ao redor de sua pessoa pagante demasiados copos cheios de sidra trazidos e
lançados. As moças gostam de se aproximar de cavalheiros que demonstram
compaixão para com elas. Compaixão é inconveniente nas degustações artísticas.
Atentou agora para essa bailarina? Kleist também teve de aguardar anos a fio
por reconhecimento. Bate palmas com força, ainda que ela quase tenha te
desagradado. Que é do teu cajado? Deixou em casa? No Gebirge, da próxima vez, e
para todos os casos, convém aparecer, bem ou mal, esportivamente aparatado.
Seguro morreu de velho. Que excitante princesa alpina saltita em tua direção?
Essa é a Pequena. De você ela quer um cheio até a borda por quinze peniques.
Conseguirá resistir a esses lábios, a esses olhos, a esse doce, estúpido pedido?
Lamentaria por você, se o conseguisse. De novo se abre, agora, a fenda na
geleira, que é o palco, e, a poder de sons e níveos flocos de graça, uma
cançonetista dinamarquesa te porá a funcionar. Você agora bebe um gole do seu
morno leite de vaca montanheza. O proprietário percorre o
local em criterioso bota-fora. Ele zela pela decência e pelo bom comportamento.
Não deixe de ir, é o que eu te digo, não deixe! Pode ser que um dia volte a me
encontrar. Mas eu, em absoluto, não te terei reconhecido; fascinado por mágicos
poderes, costumo permanecer quieto no meu canto. Nele eu sacio a minha sede,
melodias me acalentam, eu sonho.
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