terça-feira, 14 de julho de 2015

De volta ao pós

30 de abril de 2015
por José Pedro Antunes



Em “Um filme falado”, do recém-falecido cineasta português Manoel de Oliveira, mãe (professora de História) e filha perfazem um cruzeiro pelo Mediterrâneo, em cujo ponto final vão reencontrar, respectivamente, o esposo e o pai, que delas se distanciara por motivos de trabalho. Numa das cidades visitadas, depois de extensa preleção sobre a Idade Média, e tendo comparado rápida e mentalmente as características daquele período com o que já sabe do seu próprio tempo, a menina pergunta: “Mamãe, em que Idade Média estamos agora?”

Longe vão os tempos em que o verbete do ‘pós-modernismo’ provocava frisson, de tão intenso calor para tão escassa luminosidade, a ponto de o poeta Augusto de Campos condensar o seu e o nosso incômodo num poema intitulado “Pós-tudo”. Ao trocar o acento agudo por um circunflexo, o articulista José Simão faria por transcriá-lo para uso e abuso de seus leitores.

O fato é que, com o uso do verbete e de suas variantes, em mais de três décadas se produziu um pântano de salivação considerável sobre uma questão ainda sem resposta: Que época é esta que nós estamos vivendo? Cada qual a seu tempo, dois luminares latinoamericanos, o poeta mexicano Octavio Paz e o ensaísta brasileiro Antonio Candido, defenderam ser o pós-modernismo a última etapa do romantismo. Tese evidentemente implícita no hit do Lulu Santos, que não deixa de externar sua dúvida: “Talvez eu seja o último romântico”.

Mas permita-me o leitor um olhar retrospectivo para o meu próprio percurso de estudioso da literatura, que se deu, em boa parte, sob a égide do debate acima tangenciado. Num curso de pós-graduação que frequentei na Unesp de Rio Preto, e eu tinha como companheiro de viagem e colega de classe o Marcos Murad, coube-me apresentar um seminário sobre o romance “Angústia”, de Graciliano Ramos. A título de curiosidade, mencionei que, já nos anos 1950, o crítico Wilson Martins dizia ser o autor em apreço um dos nossos ‘pós-modernistas’. Para além da surpresa com ocorrência tão precoce do momentoso termo, quis ressaltar-lhe a intenção meramente cronológica de assim classificar os autores que vieram depois do nosso verde-amarelo modernismo.

No seminário seguinte, uma colega já se respaldava nesse meu comentário, pontual, para cotejar duas obras fundamentais do “pós-modernismo”: “Vidas Secas”, de Graciliano, e o filme “Paris, Texas”, de Wim Wenders. Sim, o cotejo se justificava já nos títulos das obras, que consistiam de palavras justapostas com terminações idênticas: “Vidasss Secasss’ / ‘Parisss, Texasss’. A sala certamente tremeu sob o sibilante impacto do achado.

Nos anos que se seguiram, tratei de divulgar esse momento marcante dos estudos literários por estas bandas, sem suspeitar que um dos ouvintes pudesse vir a fazê-lo com arma ainda mais eficaz e absolutamente contemporânea. Um dia, dou com um grafite no muro do quintal da casa da Jane e do Bruno Moraes, na Vila Xavier. Tendo-o visto primeiro de fianco, achei, ideia pouco provável, que se tratasse de Nossa Senhora Aparecida. De frente, vi que me equivocara: era a reprodução do fotograma icônico do filme de Wim Wenders, com o protagonista, Travis (Harry Dean Stanton), caminhando por uma linha férrea, vindo na direção do observador. No alto, a legenda: “Vidas, Secas”.

Bem mais adiante, o Brunão me contou que um seu amigo decidira difundir a obra em alguns pontos da cidade. E foi no domingo último que eu me deparei com a materialização daquela nossa private joke. No muro de uma das casas que ficam defronte ao Bar do Zinho, portanto, dirigida em primeira linha ao público que frequenta aquele prestigioso point. Público que agora, se até ele chegar este meu comentário, terá a oportunidade de compreender a gênese e o real sentido dessa pós-moderníssima conjugação de referências.


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