24 de agosto de 2015
por José Pedro Antunes
Sérgio Ricardo? Ah, esse
quebrou o violão naquela noite em 1967. Só agora, com o filme de Ricardo Calil
e Renato Terra, ele próprio veio a saber que armaram contra ele. Para fazer de
um festival de música popular um programa de TV, havia que distribuir os papéis: ele seria
o vilão.
Mas Sérgio não era nenhum novato, como Edu Lobo, Chico, Caetano, Gil, os Mutantes. “Beto Bom de Bola” – ou “de vaia”, como ele mesmo ironizava naquela noite infeliz – não estará, talvez, entre as suas melhores canções.
Querem uma obra-prima?
Postada no youtube, é dele uma animação digital para seu maior hit: “Zelão”.
Outras? No site que reúne tudo sobre sua
trajetória e obra, incluindo a discografia completa, para ouvir e baixar.
Na última quarta, no Sesc/SC,
tocou-me mediar o bate-papo com esse que, entre tantas coisas, compôs a trilha
de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Glauber lhe arrancou, ele afirma, o de que
nem ele próprio se sabia capaz: a voz de cantador cego, nordestino, que pontua
as aparições de Antonio das Mortes.
Paulista de Marília, nascido
João Lutfi, o nome artístico o acompanharia como pianista na noite, ator de
novelas e filmes, cantor de sambas românticos, compositor e intérprete de
bossa-nova. Fez parte do elenco que, em noite histórica no Carnegie Hall,
lançou o gênero para o mundo.
Dentre seus filmes,
destaquem-se “Este mundo é meu”, curta premiado nos EUA, e “A noite do
espantalho”. Escrito o roteiro, conta, eis que lhe surge à porta “o pessoal de
Pernambuco”, aliás, dois cabeludos: Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Em Alceu,
seu tanto alucinado, cabeleira farta, ele viu que ganhara o “espantalho” para o
filme.
No cinema, projetou ainda o
irmão, Dib Lutfi, que se tornaria o mais criativo e requisitado câmera do
cinema novo. E, na música, duas parcerias de futuro: João Bosco & Aldir
Blanc, Fagner & Belchior. Mas essa já é uma outra história, a do “disco de
bolso”, uma sua idéia, pioneira, que o Pasquim comprou e lançou nas bancas do
país.
Talvez o leitor não consiga
imaginar o espanto que foi encontrar nas bancas, no início dos anos 1970,
encartado num jornal chamado O Pasquim, o compacto duplo que trazia: no lado A,
Tom Jobim, com a inédita “Águas de Março”; e no lado B, “um tal de João Bosco”,
com “Agnus Sei”, em parceria com Aldir Blanc.
Começava a breve história do
“Disco de Bolso”, idealizado por Sérgio Ricardo. A 2ª. edição trazia Caetano
Veloso, que retornava do exílio londrino, com “A volta da Asa Branca”; e um
cearense, de nome Fagner, com “Mucuripe”, em parceria com Belchior.
Falido O Pasquim, ficamos sem
os seguintes, que trariam, respectivamente, Egberto Gismonti e Alceu Valença,
Paulinho da Viola e Luis Melodia.
Para falar da importância de
Sérgio Ricardo para a geração que se projetou naquela noite em 1967, repasso ao
leitor um pouco do que ele contou à platéia do evento “Achados e Perdidos”, no
Sesc/S. Carlos.
Era comum novos compositores
e intérpretes virem-lhe bater à porta, meados dos anos 1960, quando ninguém
imaginava o que estava por vir. Um dia, um garoto chamado Chico queria lhe
mostrar “um sambinha”, acompanhado por um amigo. O sambinha: “Sonho de um
carnaval”. O amigo: Toquinho. Sem crer no que ouvira, Sérgio perguntou se havia
mais. E havia: “Pedro Pedreiro”. O resto o leitor sabe – e certamente cante.
Emoção maior foi, décadas depois, ouvir da boca do próprio Chico, que este,
quando sonhava ser cantor de rádio, queria ser Sérgio Ricardo.
O “Achados e Perdidos” é
criação do nosso conhecido e querido Chico Galvão – animadora presença no
Sesc/Araraquara em seus primórdios.
O convidado, no caso, recebe
em casa uma mala, a ser preenchida com objetos reveladores de sua trajetória e,
depois, desfeita diante do público.
No encerramento do bate-papo
com o SR. Talento, a produção me soprou uma última pergunta: “Sérgio Ricardo, o
que você achou e o que você perdeu na sua vida?” Do Carnegie Hall ao Vidigal,
onde hoje vive, é uma longa história.
Do Morro do Vidigal, onde
vive há alguns anos, Sérgio Ricardo só sairia mesmo para voltar a viver em sua
terra natal. É no “Buracão”, reserva de mata atlântica, lugar paradisíaco nos
arredores de Marília, que ele pretende rodar um dos dois filmes em preparação.
Ali, viveria feliz, não fossem as premências da vida material, algo
inacreditável, diga-se, para um realizador do seu porte e em tantas frentes. Em
São Carlos, o compositor antecipava uma bomba prestes a explodir na imprensa: o
escandaloso desvio de direitos autorais. Um certo Coitinho, no Rio Grande do
Sul, estaria a receber pela trilha do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
No Vidigal, não faz muito
tempo, Sérgio liderou a resistência da população contra a remoção de uma parte
do morro, para dar lugar a um elevado. Ou seja, continua engajado como sempre
foi, pronto a abraçar as causas de uma população, a brasileira, que é o que ele
diz ter achado em sua vida. Poderia ter vivido e produzido em vários outros
países, mas não trocaria, por nada, este povo tão especial que é o brasileiro,
capaz de um dia acordar, reagir, fazer sua revolução por meios inéditos, sem
violência.
Chegou a filmar no Líbano, na
localidade de onde vieram os seus pais. Teve financiamento do governo libanês,
mas o resultado, considerado subversivo por incitar a população a deixar o país
– assim entenderam as autoridades –, acabou apreendido, ficou por lá, ninguém
viu, desapareceu. Aqui também enfrentou problemas por ter a mania de dizer o
que pensa, sofreu boicotes, conheceu um certo ostracismo. Por pouco, não
desaparece do cenário cultural.
O título desta série é o
mesmo de um seu LP, lançado pela Elenco em plena bossa nova. A gravadora, de
par com o extremo bom gosto musical, primava pelas capas inovadoramente
conceituais e de um apuro gráfico até então inédito entre nós – à altura
daquele momento tão especial para a cultura brasileira. A conferir no site do
compositor. Em construção, mas já fartamente abastecido.
Artista multimídia que é,
desde sempre, como concilia tão variados projetos? Sérgio Ricardo é do tipo que
faz uma coisa de cada vez. Quando pinta, por exemplo, esquece que é músico ou
cineasta. Também nunca se ligou no sucesso. As coisas acontecem. Com Sérgio
Mendes, poucas afinidades. Sempre preferiu o outro bossa-novista que fez
carreira internacional: Eumir Deodato. O Tropicalismo? Claro, foi uma rendição
ao mercado. Mas não esquecer o imenso talento dos tropicalistas. De Caetano
Veloso, “um gênio”, ele cantarola acordes de “uma obra-prima”: “No dia em que
eu vim me embora”.
Geraldo Vandré? Chegaram a
fazer shows e a gravar canções um do outro. Dizem que ainda continua compondo.
Cadê? Suplantar Jobim e Chico diante de um Maracanãzinho lotado, e só com o
violão, não é pra qualquer um. Um grande artista.
Melhor canção da MPB?
“Disparada”. Variações melódicas e harmônicas são páreo para grandes
compositores eruditos. Theo de Barros, o autor, arranjou algumas faixas do seu
LP “Arrebentação” (1971). Disco mais importante? “Sérgio Ricardo” (Continental,
1967). Na capa, a foto de sua aparição no fatídico Festival da Record. Os
censores não gostaram da faixa branca a encobrir-lhe a boca, nem do título de
uma das canções: “Calabouço”.
Quanto ao cineasta, diz
Glauber Rocha, em 1964, ano de lançamento de “Esse mundo é meu”: “É um legítimo
passaporte de cineasta para o músico consagrado que é Sérgio Ricardo. Moderno,
vivo, alegre, carregado de poesia e esperança, o filme demonstra, mais uma vez,
que o cinema novo conquista dia a dia sua posição em nosso panorama
cinematográfico.”
Filmagem
de “Juliana do Amor Perdido” (Dib, com a câmera, deitado; Sérgio, no fundo,
atrás das redes)
Para o Cahiers du Cinéma, “Esse
mundo é meu” foi um dos filmes mais importantes do ano. Já “A noite do
espantalho”, 2º. lugar no Festival de NY, foi considerado um dos 15 melhores de
1974 nos EUA. Também “Menino da Calça Branca” e “Juliana do Amor Perdido” foram
aclamados e premiados em festivais no Brasil e no exterior.
Fotogramas do curta-metragem
“O menino da calça branca”
Não dá pra discordar do
título do LP: “Um SR. Talento”.
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[ZÉ PEDRO ANTUNES, professor
de língua e literatura alemã na UNESP/Araraquara, é tradutor, animador cultural
e colunista do jornal Tribuna Impressa de Araraquara (coluna Oxouzine, às
quartas-feiras). Aos 27 de abril de 2011, mediou, no SESC/ S. Carlos, o evento
“ACHADOS E PERDIDOS”, criação e coordenação de CHICO GALVÃO, que teve SÉRGIO
RICARDO como primeiro convidado]
Adorei esse blog, Mauro! José Pedro é um sr. talento também! Vamos trocar linques! Abs!!!
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