domingo, 5 de julho de 2015

Canção de Siruiz

25 de março de 2015
por José Pedro Antunes

Faltou dizer que não é minha a formulação ‘canção peregrina’, é do Guimarães Rosa. Mas há tanto incorporada à minha fala, que já posso dizê-la tão minha quanto a canção em pauta na crônica de quarta passada. Em Rosa, eu me iniciei com O Recado do Morro, que, justamente, narra o nascimento de uma dessas canções.

Para ler Grande Sertão: Veredas alguém me deu um conselho. Que eu lesse em voz alta as primeiras 20 ou 30 páginas. Em sendo a transcriação de um relato oral, o recurso serviria para espantar o preconceito de que o livro resultasse indevassável. Fui além, tendo inventado melodias para os versos que entremeiam a narrativa: “Urubu é vila alta, / mais idosa do sertão: / padroeira, minha vida –  / vim de lá, volto mais não?”

Ao ler em público, ou pedir a um aluno que leia para a classe, o mais das vezes acabo me penitenciando. Dos recorrentes malogros, sorvo consolo na ideia de que um texto escrito, em primeira linha, pressupõe silenciosa fruição individual. Por outro lado, na Alemanha eu me habituei à tradição das leituras públicas, com escritores lendo passagens de obra recente. Num documentário sobre Kafka, um entrevistado conta ter conhecido o escritor em Munique, onde leu excertos de Na Colônia Penal. Nos diários, o próprio Kafka anotaria que a leitura havia sido um clamoroso desastre.

O Serão Literário, que promovíamos na Faculdade de Ciências e Letras, tinha um bordão: “a literatura na voz do autor”. Mas não foi fácil convencer todos os convidados a adotá-lo. Houve quem preferisse contornar a incumbência, e até quem delegasse a missão a algum abnegado dentre os circunstantes.

Volto a ouvir um registro que o MEC produziu em 1997. Para inaugurar a Coleção Ler e Ouvir, que tinha por objetivo divulgar a literatura brasileira em CD, o escolhido foi João Guimarães Rosa, com 7 episódios de Grande Sertão: Veredas, nas vozes de Antonio Candido, Davi Arrigucci Jr. e José Mindlin.

Antonio Candido não apenas conhece em profundidade o texto roseano, como na infância terá conhecido o homem que inspirou um dos personagens, o Hermógenes. É o que me me faz saber um especialista, Renato Bueno Franco, desautorizando o meu comentário de que o Candido estaria mais para um dos nossos caipiras do interior de São Paulo. Davi Arrigucci Jr. é quem se entrega mais decidido a aventuras de alto risco, ao dramatizar cada intervenção direta dos personagens na fala do narrador. E a verdade é que até se mostra à vontade em meio ao vozerio que engendra.

Já o Mindlin, bibliófilo renomado, se salva de resvalar para o tom professoral ou crítico que às vezes contamina a interpretação dos parceiros de leitura. Sua performance é a do amante da literatura, soberanamente confortável entre livros, quase um vovô a contar uma história, em absoluta empatia com os ouvintes acocorados à sua volta. De sua voz, as palavras fluem como se produzidas no instante em que se pronunciam, com a tranquilidade de quem se sabe apenas leitor, com a reverência de quem jamais se sobreporia ao objeto da leitura, com a generosidade de quem se compraz em compartilhar com o próximo os prazeres de que se alimenta.

No que seria a segunda das 10 faixas do CD, surge então a referida ‘canção peregrina: a Canção de Siruiz, a dos versos que eu cantarolava, a meu esmo, ao ler pela primeira vez o romance. Diz o encarte que a composição é de Luiz Henrique Xavier a partir de melodia folclórica cantada e adaptada por Antonio Candido ao texto de Guimarães Rosa: “Corro os dias nesses verdes, / meu boi mocho baetão: / buriti, água azulada, / carnaúba – sal do chão...”


E o professor Candido se revela um intérprete extraordinário, cuja voz se acomoda com inteira naturalidade num arranjo que faz por cercá-la de um emaranhado de outras vozes e ruídos. Para que ela ressoe em pureza e simplicidade no sertão que é o mundo: “Remanso de rio largo, / viola da solidão: / quando vou pr’a dar batalha, / convido meu coração...”


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