25 de março de 2015
por José Pedro Antunes
por José Pedro Antunes
Faltou dizer
que não é minha a formulação ‘canção peregrina’, é do Guimarães Rosa. Mas há
tanto incorporada à minha fala, que já posso dizê-la tão minha quanto a canção
em pauta na crônica de quarta passada. Em Rosa, eu me iniciei com O Recado
do Morro, que, justamente, narra o nascimento de uma dessas canções.
Para ler Grande
Sertão: Veredas alguém me deu um conselho. Que eu lesse em voz alta as
primeiras 20 ou 30 páginas. Em sendo a transcriação de um relato oral, o
recurso serviria para espantar o preconceito de que o livro resultasse
indevassável. Fui além, tendo inventado melodias para os versos que entremeiam
a narrativa: “Urubu é vila alta, / mais idosa do sertão: / padroeira,
minha vida – / vim de lá, volto mais não?”
Ao ler em
público, ou pedir a um aluno que leia para a classe, o mais das vezes acabo me
penitenciando. Dos recorrentes malogros, sorvo consolo na ideia de que um texto
escrito, em primeira linha, pressupõe silenciosa fruição individual. Por outro
lado, na Alemanha eu me habituei à tradição das leituras públicas, com
escritores lendo passagens de obra recente. Num documentário sobre Kafka, um
entrevistado conta ter conhecido o escritor em Munique, onde leu excertos de Na
Colônia Penal. Nos diários, o próprio Kafka anotaria que a leitura havia sido
um clamoroso desastre.
O Serão
Literário, que promovíamos na Faculdade de Ciências e Letras, tinha um bordão:
“a literatura na voz do autor”. Mas não foi fácil convencer todos os convidados
a adotá-lo. Houve quem preferisse contornar a incumbência, e até quem delegasse
a missão a algum abnegado dentre os circunstantes.
Volto a
ouvir um registro que o MEC produziu em 1997. Para inaugurar a Coleção Ler e
Ouvir, que tinha por objetivo divulgar a literatura brasileira em CD, o
escolhido foi João Guimarães Rosa, com 7 episódios de Grande Sertão:
Veredas, nas vozes de Antonio Candido, Davi Arrigucci Jr. e José Mindlin.
Antonio
Candido não apenas conhece em profundidade o texto roseano, como na infância
terá conhecido o homem que inspirou um dos personagens, o Hermógenes. É o que
me me faz saber um especialista, Renato Bueno Franco, desautorizando o meu
comentário de que o Candido estaria mais para um dos nossos caipiras do
interior de São Paulo. Davi Arrigucci Jr. é quem se entrega mais decidido a
aventuras de alto risco, ao dramatizar cada intervenção direta dos personagens
na fala do narrador. E a verdade é que até se mostra à vontade em meio ao
vozerio que engendra.
Já o
Mindlin, bibliófilo renomado, se salva de resvalar para o tom professoral ou
crítico que às vezes contamina a interpretação dos parceiros de leitura. Sua
performance é a do amante da literatura, soberanamente confortável entre
livros, quase um vovô a contar uma história, em absoluta empatia com os
ouvintes acocorados à sua volta. De sua voz, as palavras fluem como se
produzidas no instante em que se pronunciam, com a tranquilidade de quem se
sabe apenas leitor, com a reverência de quem jamais se sobreporia ao objeto da
leitura, com a generosidade de quem se compraz em compartilhar com o próximo os
prazeres de que se alimenta.
No que seria
a segunda das 10 faixas do CD, surge então a referida ‘canção peregrina: a
Canção de Siruiz, a dos versos que eu cantarolava, a meu esmo, ao ler pela
primeira vez o romance. Diz o encarte que a composição é de Luiz Henrique
Xavier a partir de melodia folclórica cantada e adaptada por Antonio Candido ao
texto de Guimarães Rosa: “Corro os dias nesses verdes, / meu boi mocho
baetão: / buriti, água azulada, / carnaúba – sal do chão...”
E o
professor Candido se revela um intérprete extraordinário, cuja voz se acomoda
com inteira naturalidade num arranjo que faz por cercá-la de um emaranhado de
outras vozes e ruídos. Para que ela ressoe em pureza e simplicidade no sertão
que é o mundo: “Remanso de rio largo, / viola da solidão: / quando vou
pr’a dar batalha, / convido meu coração...”
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