segunda-feira, 29 de junho de 2015

Uma canção peregrina

18 de março de 2015
por José Pedro Antunes

A melodia me soara um tanto hesitante, a letra parecendo ter sofrido a ação corrosiva do tempo. Quem me ensinou foi um colega de escola, que a ouvira de sua mãe, que costumava cantá-la enquanto lavava a roupa. Eu, que desde cedo cultivara o hábito de memorizar toda canção que me tocasse, logo tratei de incorporá-la ao meu repertório.

Já a primeira estrofe, muito antes de Luis Melodia e Carlinhos Brown terem nos habituado a não questionar letras de música pelos parâmetros da lógica formal, parece anunciar uma toada do caboclo doido e apaixonado: “Maria Júlia embarcou pra Seriema / Coitadinha da morena / Quase morreu de chorar // Ai eu pedi / Que desse um voto pra ela / Morena cor de canela / Peço um beijo, ela me dá”.

A estrofe seguinte me aconselharia a tirar de uma vez o cavalo da chuva, deixar que a canção me impusesse o sonoro desembestar de seus desregramentos: “É lua clara / Quarteirão para minguante / Nossa Senhora do Monte / São Pedro, Menino Deus // Cristo nasceu / Foi por obra do Divino / Sacristão bateu no sino / E a luz do sol apareceu”.

Assim, tal como a percebi, tratei de cantá-la adiante, fazendo o que sempre fiz com qualquer canção, mesmo as de registro conhecido, nos estreitos limites dos meus conhecimentos harmônicos e no deslimite da vontade de me ajeitar com o braço do violão e ponto.

Um acerto, como constatei adiante, foi tê-la acomodado ao ritmo do que eu achava que seria um baião. Pois acabou sendo uma das canções mais bem recebidas pelas plateias que me escutaram. E olha que não é fácil fazer com que um alemão, por exemplo, se sinta impelido a arremedar com a pesada carcaça o que eu nem sabia direito como arrancava do nada.

Mas cumpre, agora, dar um salto de quase trinta anos no tempo. O google não me auxilia, mas sei que terá sido numa das últimas vezes que Inezita Barroso esteve na cidade. Terminada a apresentação, fui até a lateral do palco armado no Ginásio do Sesc e, assim que me aproximei, vi que ela estava parada a um canto, alheia ao congraçamento.

Ao perceber o meu aceno, ela prontamente veio na minha direção, com o sorriso escancarado que era sua marca registrada. E de repente conversávamos já como velhos conhecidos. O que eu queria era saber se ela, talvez, não conhecia aquela canção vinda de não sei onde. Aos primeiros versos, para minha surpresa, a cantora se pôs em alvoroço, chamando pelas Irmãs Galvão. Viesem só ouvir o que eu estava cantando. Retomei do início, como ela me pedira. E no segundo verso estava formado um quarteto, as três seguindo um pouco a reboque do que eu um dia imaginara pudessem ser aquela letra esquisita e a melodia marcante. Só nos versos finais é que me coube um solo, pois deles nenhuma delas mais se recordava: “São sete ano, sete noite, sete dia / Sete ala de quadria / Sete padre no altar // Sete baiano / Sete pandeiro rufando / Sete moça namorando / Numa noite de luar.” Na repetição dos quatro últimos versos, elas retomaram o canto, e seguimos, juntos, comendo todos os esses.

Em seguida, Inezita me contou que gravara a canção em 1958. Que a seguira cantando por um tempo, mas depois, por alguma razão, foi deixando de cantá-la. Se dizia imensamente feliz em saber que aqueles versos ainda estavam por aí à solta, e agradecida por termos nos encontrado em razão da tradição que ela sempre representara. Prometeu que tentaria localizar o registro. Até anotou o meu endereço de e-mail, mas não houve notícia. Terá sido um daqueles bolachões de 78 rotações por minuto, imagino, uma música de cada lado.

Assim que devo me conformar com o que eu mesmo intuíra de mais uma canção que peregrina no tempo, sem dono, nem rumo certo. E pelo desassombro com que as três me seguiram, forçoso é concluir que não devo ter passado tão ao arrepio do que fora a canção no tempo em que surgiu e por Inezita foi registrada.



Nenhum comentário:

Postar um comentário