07 de setembro de 2014
por José Pedro Antunes
por José Pedro Antunes
Guimarães Rosa depositava imenso interesse
na tradução de sua obra para o alemão, destinada a servir de modelo seguro para
as traduções que se fizessem para os demais idiomas europeus. Sempre generoso
com seus tradutores, chegou a dizer que alguns resultados teriam superado o
original, como se lê nas correspondências que manteve com alguns deles ao longo
dos processos tradutórios. Insistia que, em todas as circunstâncias, levassem
em conta sobretudo o leitor, ponto de convergência de todos os esforços. Vale
ressaltar a sua inestimável contribuição, com pacientes esclarecimentos e até
sugestões, sempre acertadas e aceitas, nos idiomas de chegada.
A correspondência com o alemão Curt
Meyer-Clason ganhou edição bilíngue (UFMG, ABL e Ed. Record, 2003),
lamentavelmente prejudicada por falta de uma revisão criteriosa, com cascatas
de erros em ambos os idiomas. Vale ressaltar que o material já passara pelo
crivo acadêmico, como dissertação de mestrado. Já a correspondência com o
italiano Edoardo Bizzarri (UFMG e Ed. Record, 2003) teve mais sorte, o prazer
da leitura plenamente assegurado por uma revisão irretocável.
Mas vamos falar de “Grande Sertão”, a tradução
para o alemão de “Grande
Sertão: Veredas”, que de fato se tornou uma espécie de mãe de todas as
traduções do autor mineiro e marco literário, com o tradutor elevado à altura
dos melhores de todos os tempos. Ele que também traduziu Drummond, Cabral,
Borges, Cortázar, Garcia Marquez, Jorge Amado e tantos outros. Pois em
Florianópolis, onde hoje leciona num Programa de Pós-Graduação em Tradução,
está em ação um seu compatriota que pretende ir ainda mais longe.
Trata-se de Berthold Zilly, festejado e
premiado tradutor de “Os
Sertões” de Euclides da Cunha,
tendo transladado ainda para seu idioma, entre outros, “Lavoura Arcaica” de Raduan Nassar, “Triste Fim de Policarpo Quaresma” de Lima Barreto e “Memorial de Aires” de Machado de Assis. Para ele,
Meyer-Clason acaba pondo o principal a perder: a literariedade; faz concessões
ao leitor, oferecendo-lhe pouco mais que o conteúdo de uma saga sertaneja, em
detrimento de aspectos relevantes da densa elaboração formal.
Zilly pretende entregar ao leitor do seu
idioma, finalmente, uma obra literária: “Penso que é natural que uma obra desse
quilate seja feita em duas etapas. A dele cumpriu seu papel desbravador, agora
tenho que ir além.” Para tanto, segue os princípios da “transcriação”,
defendidos pelos concretistas de São Paulo. “Transgermanização” foi o termo usado
por Haroldo de Campos ao comentar a tradução de “Os Sertões” para o alemão. Se há dois anos Zilly,
em Araraquara, dizia não estar absolutamente certo de chegar a bom termo,
recentemente, em Curitiba, falava aos germanistas sobre um trabalho já em pleno
andamento.
Ao oferecer alguns exemplos, no entanto,
pode ter dado a impressão de que a empreitada, por monumental, às vezes esbarra
na impossibilidade. Alguém lembrou que, na aplicação de seus princípios, o
próprio Haroldo, teórico principal da “transcriação”, não foi além de poemas
ou, com seu irmão Augusto de Campos, de fragmentos do “Finnegans Wake”, de James
Joyce.
E o próprio Zilly, ao comentar as
primeiras linhas do livro, parecia oferecer munição aos incrédulos. “Nonada”,
por exemplo, fica mesmo em português. O leitor alemão médio saberá intuir o
sentido da negação redobrada, intuição que necessariamente se verá reforçada
pela repetição do vocábulo outras cinco vezes ao longo da narrativa. A oração
seguinte começa e termina problemática: “Tiros que o senhor ouviu foram de
homem não.” O alemão não admite substantivos não precedidos de artigo,
tendência que ele pretende contrariar, preservando uma das marcas estilísticas
do autor. E esse “não” ao final, desligado do verbo, enfático e tão característico
dos falares regionais envolvidos, o que fazer com ele?
Ainda no Congresso da
Associação Latinoamericana de Germanistas, em Curitiba, que teve a fala do
tradutor alemão Berthold Zilly sobre sua “transcriação” de “Grande Sertão:
Veredas”, a programação incluiu exibições, na cinemateca da cidade, de um
documentário sobre os anos de Guimarães Rosa em Hamburgo, entre 1938 e 1942.
Vivendo em Berlim e ligadas à
produção cinematográfica, Adriana Jacobsen e Soraya Villela tiveram a ideia de
uma pesquisa sobre a breve estadia do escritor e compatriota na Alemanha nazista,
no que se incluía investigar seu papel na libertação de muitos judeus. Para
muitos, Aracy, a esposa a quem ele dedicaria mais adiante o grande romance,
terá sido a verdadeira heroína desses feitos à sombra da embaixada brasileira.
Mas é evidente que, sem a conivência e a assinatura do cônsul, os passaportes
por ela providenciados não teriam sido expedidos.
No que se segue, algumas fotos do escritor a cortejar uma alemã, tentativa de romance vivida em cenário pontualmente idílico mas cercado por um vasto panorama pouco propício. Documenta-se a atuação de Rosa na embaixada, a correspondência que mantinha com amigos no Brasil, comentários sobre a preocupante escalada de Hitler e a notícia de que, desde a travessia marítima, revisava um livro de contos. Numa das missivas, dá a saber que revisava “O Burrinho Pedrês”, concluindo-se que o livro era “Sagarana” e surgiria dois anos depois de terminada a guerra, em 1947.
A atuação clandestina do cônsul, por mais que tenha tratado de convenientemente disfarçá-la, passara a chamar a atenção dos alemães, tendo sido ele chamado inúmeras vezes a prestar esclarecimentos sobre as relações que mantinha tanto na Alemanha como em seu país de origem, bem como sobre suas reservas em relação aos nazistas e à guerra. Ao espectador se oferecem, a maior parte do tempo em áudio, falas de pessoas que foram do seu convívio na época, direta ou indiretamente envolvidas nos trâmites que salvaram as vidas de muitos.
Ponto alto do documentário
foi uma descoberta casual nos arquivos da tevê alemã: uma entrevista de 12
minutos, mediada pelo teórico e crítico Walter Höllerer, quando do lançamento
da tradução de “Grande Sertão: Veredas”. No debate, uma das diretoras
contou como se deu o achado, falando da surpresa, de resto a mesma do espectador,
de ter pela primeira vez diante dos olhos imagens em movimento do escritor.
Apenas 6 minutos desse achado
puderam ser incluídos. De início, contava a diretora, Rosa até ensaiou
responder em alemão, mas a produção julgou mais impactante que o fizesse em
português, vertido ao vivo por um profissional. Ao público brasileiro, resta lamentar
a oportunidade perdida de vê-lo e ouvi-lo em seu tão decantado domínio do
idioma de Goethe, fartamente documentado na correspondência com Meyer-Clason
aqui anteriormente ventilada. E ao público alemão, afinal, nada restou, pois a
entrevista jamais foi levada ao ar.
Colocados num momento chave
do filme, mérito da montagem, o escritor vivo e se mexendo ante os nossos
olhos, a pausada e carinhosa fala mineira, a falha num dos dentes da frente,
que ele tenta esconder recobrindo-a insistentemente com os lábios, o sorriso
onipresente nos atos de escuta e fala contaminam o filme inteiro, determinando
sua recepção. É como, no restante do tempo, igualmente assim o tivéssemos
podido contemplar embevecidos.
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