terça-feira, 16 de junho de 2015

Outros sertões

07 de setembro de 2014
por José Pedro Antunes

Guimarães Rosa depositava imenso interesse na tradução de sua obra para o alemão, destinada a servir de modelo seguro para as traduções que se fizessem para os demais idiomas europeus. Sempre generoso com seus tradutores, chegou a dizer que alguns resultados teriam superado o original, como se lê nas correspondências que manteve com alguns deles ao longo dos processos tradutórios. Insistia que, em todas as circunstâncias, levassem em conta sobretudo o leitor, ponto de convergência de todos os esforços. Vale ressaltar a sua inestimável contribuição, com pacientes esclarecimentos e até sugestões, sempre acertadas e aceitas, nos idiomas de chegada.

A correspondência com o alemão Curt Meyer-Clason ganhou edição bilíngue (UFMG, ABL e Ed. Record, 2003), lamentavelmente prejudicada por falta de uma revisão criteriosa, com cascatas de erros em ambos os idiomas. Vale ressaltar que o material já passara pelo crivo acadêmico, como dissertação de mestrado. Já a correspondência com o italiano Edoardo Bizzarri (UFMG e Ed. Record, 2003) teve mais sorte, o prazer da leitura plenamente assegurado por uma revisão irretocável.

Mas vamos falar de “Grande Sertão”, a tradução para o alemão de “Grande Sertão: Veredas”, que de fato se tornou uma espécie de mãe de todas as traduções do autor mineiro e marco literário, com o tradutor elevado à altura dos melhores de todos os tempos. Ele que também traduziu Drummond, Cabral, Borges, Cortázar, Garcia Marquez, Jorge Amado e tantos outros. Pois em Florianópolis, onde hoje leciona num Programa de Pós-Graduação em Tradução, está em ação um seu compatriota que pretende ir ainda mais longe.

Trata-se de Berthold Zilly, festejado e premiado tradutor de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, tendo transladado ainda para seu idioma, entre outros, “Lavoura Arcaica” de Raduan Nassar, “Triste Fim de Policarpo Quaresma” de Lima Barreto e “Memorial de Aires” de Machado de Assis. Para ele, Meyer-Clason acaba pondo o principal a perder: a literariedade; faz concessões ao leitor, oferecendo-lhe pouco mais que o conteúdo de uma saga sertaneja, em detrimento de aspectos relevantes da densa elaboração formal.

Zilly pretende entregar ao leitor do seu idioma, finalmente, uma obra literária: “Penso que é natural que uma obra desse quilate seja feita em duas etapas. A dele cumpriu seu papel desbravador, agora tenho que ir além.” Para tanto, segue os princípios da “transcriação”, defendidos pelos concretistas de São Paulo. “Transgermanização” foi o termo usado por Haroldo de Campos ao comentar a tradução de “Os Sertões” para o alemão. Se há dois anos Zilly, em Araraquara, dizia não estar absolutamente certo de chegar a bom termo, recentemente, em Curitiba, falava aos germanistas sobre um trabalho já em pleno andamento.

Ao oferecer alguns exemplos, no entanto, pode ter dado a impressão de que a empreitada, por monumental, às vezes esbarra na impossibilidade. Alguém lembrou que, na aplicação de seus princípios, o próprio Haroldo, teórico principal da “transcriação”, não foi além de poemas ou, com seu irmão Augusto de Campos, de fragmentos do “Finnegans Wake”, de James Joyce.


E o próprio Zilly, ao comentar as primeiras linhas do livro, parecia oferecer munição aos incrédulos. “Nonada”, por exemplo, fica mesmo em português. O leitor alemão médio saberá intuir o sentido da negação redobrada, intuição que necessariamente se verá reforçada pela repetição do vocábulo outras cinco vezes ao longo da narrativa. A oração seguinte começa e termina problemática: “Tiros que o senhor ouviu foram de homem não.” O alemão não admite substantivos não precedidos de artigo, tendência que ele pretende contrariar, preservando uma das marcas estilísticas do autor. E esse “não” ao final, desligado do verbo, enfático e tão característico dos falares regionais envolvidos, o que fazer com ele?



Ainda no Congresso da Associação Latinoamericana de Germanistas, em Curitiba, que teve a fala do tradutor alemão Berthold Zilly sobre sua “transcriação” de “Grande Sertão: Veredas”, a programação incluiu exibições, na cinemateca da cidade, de um documentário sobre os anos de Guimarães Rosa em Hamburgo, entre 1938 e 1942.


Vivendo em Berlim e ligadas à produção cinematográfica, Adriana Jacobsen e Soraya Villela tiveram a ideia de uma pesquisa sobre a breve estadia do escritor e compatriota na Alemanha nazista, no que se incluía investigar seu papel na libertação de muitos judeus. Para muitos, Aracy, a esposa a quem ele dedicaria mais adiante o grande romance, terá sido a verdadeira heroína desses feitos à sombra da embaixada brasileira. Mas é evidente que, sem a conivência e a assinatura do cônsul, os passaportes por ela providenciados não teriam sido expedidos.

No que se segue, algumas fotos do escritor a cortejar uma alemã, tentativa de romance vivida em cenário pontualmente idílico mas cercado por um vasto panorama pouco propício. Documenta-se a atuação de Rosa na embaixada, a correspondência que mantinha com amigos no Brasil, comentários sobre a preocupante escalada de Hitler e a notícia de que, desde a travessia marítima, revisava um livro de contos. Numa das missivas, dá a saber que revisava “O Burrinho Pedrês”, concluindo-se que o livro era “Sagarana” e surgiria dois anos depois de terminada a guerra, em 1947.

A atuação clandestina do cônsul, por mais que tenha tratado de convenientemente disfarçá-la, passara a chamar a atenção dos alemães, tendo sido ele chamado inúmeras vezes a prestar esclarecimentos sobre as relações que mantinha tanto na Alemanha como em seu país de origem, bem como sobre suas reservas em relação aos nazistas e à guerra. Ao espectador se oferecem, a maior parte do tempo em áudio, falas de pessoas que foram do seu convívio na época, direta ou indiretamente envolvidas nos trâmites que salvaram as vidas de muitos.

Ponto alto do documentário foi uma descoberta casual nos arquivos da tevê alemã: uma entrevista de 12 minutos, mediada pelo teórico e crítico Walter Höllerer, quando do lançamento da tradução de “Grande Sertão: Veredas”. No debate, uma das diretoras contou como se deu o achado, falando da surpresa, de resto a mesma do espectador, de ter pela primeira vez diante dos olhos imagens em movimento do escritor.

Apenas 6 minutos desse achado puderam ser incluídos. De início, contava a diretora, Rosa até ensaiou responder em alemão, mas a produção julgou mais impactante que o fizesse em português, vertido ao vivo por um profissional. Ao público brasileiro, resta lamentar a oportunidade perdida de vê-lo e ouvi-lo em seu tão decantado domínio do idioma de Goethe, fartamente documentado na correspondência com Meyer-Clason aqui anteriormente ventilada. E ao público alemão, afinal, nada restou, pois a entrevista jamais foi levada ao ar.


Colocados num momento chave do filme, mérito da montagem, o escritor vivo e se mexendo ante os nossos olhos, a pausada e carinhosa fala mineira, a falha num dos dentes da frente, que ele tenta esconder recobrindo-a insistentemente com os lábios, o sorriso onipresente nos atos de escuta e fala contaminam o filme inteiro, determinando sua recepção. É como, no restante do tempo, igualmente assim o tivéssemos podido contemplar embevecidos.


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