sábado, 20 de junho de 2015

“Não se pode conceber mais nenhuma ideia clara”

11 de novembro de 2014

[Christiane Hoffmann (FAZ) entrevista o filósofo Christoph Türcke, autor de “Hyperaktiv! Kritik der Aufmerksamkeitsdefizit Kultur” [Hiperativos! Crítica da Cultura do Déficit de Atenção], pela C. H. Beck Verlag, 2012. Tradução: Zé Pedro Antunes.]

E por que cultura?

Vivemos numa cultura de estimulação microeletrônica, que nos expõe a um constante bombardeio de impressões. Nesse sentido, a penetração das telas no mundo do trabalho foi mais um grande salto adiante.

Nossa sociedade inteira sofre do déficit de atenção?

Não se trata de uma doença num ambiente saudável. A sociedade inteira sofre de crescente incapacidade de atenção. Nas crianças, ela se manifesta com força máxima. Falo de uma perturbação cultural. Sofremos de “dispersão concentrada”. Conceito paradoxal. Constantemente nos empenhamos em nos dispersar. O que, longe de levar à distensão, produz estresse.

E perde-se a capacidade da atenção?

Os meios eletrônicos produzem efeito quase sempre abrupto sobre os sentidos. Cada imagem é um pequeno choque, um pequeno desvio. A atenção é estimulada, o que é positivo, sendo uma importante técnica cultural do cinema. Mas, incessantemente interrompida, redunda em seu contrário. Com sempre novos estímulos, perde-se a capacidade de permanecer em algo.

Mas o ser humano é hoje muito mais capaz de atenção do que antes. Penso num conceito: multitarefa.

A atenção é uma capacidade historicamente crescente. Ela é maleável. Hoje podemos nos entreter enquanto dirigimos um carro. Mas a maleabilidade tem limites. A ideologia do multitarefa parte de falsas premissas. Acreditar possível fazer cinco coisas ao mesmo tempo com a mesma atenção é um equívoco.

Não deveriam então os adultos e não as crianças sofrer de TDAH [Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade]?

As crianças têm a vivência de como os adultos se habituaram a interrupções constantes. Enquanto brincam com os filhos, a tevê ligada, eles checam e-mails e fotos. Crianças aprendem a atenção mais ou menos aos nove meses. É quando começam a se ligar, admiradas, no que os adultos lhes apontam. Processo imprescindível para o seu desenvolvimento. Quando incessantemente perturbado, as consequências são dramáticas. É imperceptível quando a criança é ainda muito pequena. [...] A carência de atenção pode ter uma invisibilidade diabólica, mas a longo prazo produz efeitos contundentes. O único calmante para essas crianças – afora o metilfenidato [ritalina] – é a tela.

Você vê o TDAH como fenômeno cultural. Mas os diagnósticos não costumam apontar uma perturbação neuronal?

Em geral, longe de ser um defeito físico, é consequência da enorme capacidade de adequação do nosso cérebro. Adequar-se a sempre novos estímulos, nisso consiste sua inteligência e criatividade. Na elaboração desses estímulos, ela configura vias e padrões neuronais. E padrões que se preservam são consolidados. Padrões estáveis são imprescindíveis para a estabilidade mental. Mas quando uma avalanche de estímulos obriga a construir sem parar algo de novo, a construção resulta em desconstrutividade. Pensemos num canteiro de obras: Se cada parede for interrompida para dar lugar à construção de outra parede, não vai surgir nunca um edifício.

Pode ser que também a demência senil tenha a ver com a constante “dispersão concentrada” produzida pelo excesso de televisão?

Ainda não me dediquei ao tema, mas algumas coisas sugerem que sim.

Por outro lado: O que é, pois, tão ruim na “dispersão concentrada”? A humanidade tem, afinal, tanta criatividade e capacidade performática como nunca em sua história.

É a ideologia do progresso. Uma quantidade crescente de estudantes não consegue mais seguir uma hora e meia de atividades pedagógicas, mesmo uma apresentação em Power Point com muitas imagens. O Power Point, como estimulante didático, leva afinal à perda da capacidade de pensar sem o constante acompanhamento de imagens.

Talvez as aulas de hora e meia simplesmente se encaixem numa forma tradicional de cultura. Mas o progresso, hoje, exige aptidão para mudanças velozes e constantes. Por que o pessimismo cultural?

Sem a capacidade de permanecer num assunto, não se pode conceber mais nenhuma ideia clara. [...] Mesmo a imaginação, a capacidade de criar imagens interiores, desaparece, porque sofremos incessante bombardeio de imagens exteriores e isso afeta a capacidade da experiência durável. Nenhuma razão para pessimismo cultural, mas tampouco cumpre lamentar um processo inalterável. Nós também desenvolvemos estratégias contrárias.

Quais?

Criação de espaços de blindagem, não exposição permanente aos meios de comunicação. Eu, por exemplo, não tenho tevê.

Estratégias individuais, portanto?

Também podem ser coletivas. Com os meus alunos, eu promovo jornadas em locais onde não há sinais de internet, onde, enclausurados, tratamos apenas dos nossos assuntos.

Para a sociedade hiperativa você prescreve rituais. Por que eles são importantes?

O homem é um animal de repetição. Homem ele se tornou por meio de rituais de sacrifício, com os quais emulava os horrores da natureza, para poder dominá-los. Rituais têm efeitos tranquilizantes. Sem a constante repetição não se assimila nada. Claro, também é possível fixar coisas erradas, mas sem a repetição não se fixa absolutamente nada.

Os computadores são realmente culpados pela hiperatividade? Ao desprezar os rituais, negar a memorização e demolir as regras de aprendizagem, a geração de 68 não contribuiu para esse estado de coisas?

Primeiro: Máquinas nunca são “culpadas”, somente, e sempre, quem lida com elas. Portanto: Sim, minha geração subestimou a importância dos rituais e das repetições, quando não os baniu inteiramente. Sobretudo no mofo do pós-guerra, com tanto vazio ritual. De tanto ter que decorar, passamos a classificar a memorização como irrefletida.

Você sugere a introdução de uma ‘Disciplina dos Rituais’. O que vem a ser isso?

Um eixo tranquilizante, que deve perpassar o cotidiano escolar em todos os níveis e tipos de escola. No curso básico, breves apresentações regulares em todas as disciplinas e a serem elaboradas pelos alunos, o que requer repetição e memorização, cujo efeito é tranquilizante e estabilizador.

E depois?

Sobre essa base, seria preciso introduzir uma disciplina autônoma: a ‘Disciplina dos Rituais’, unindo religião e sociologia, com a mesma duração de todas as outras disciplinas. Estruturas sociais não passam de rituais sedimentados. Trata-se de fazer com que o conjunto da sociedade tome consciência do alcance dos rituais. Não no sentido confessional, mas com bastante ênfase no significado da religião. Assim, teríamos um fórum para os conflitos provenientes da mistura multicultural nas escolas, abrangendo todas as culturas e subculturas que hoje nelas convivem. Cada qual aprender a professar o que lhe é importante e sagrado, sem ferir os demais, é algo que poderia ser elaborado na referida disciplina. Teria, pois, tanto individual como socialmente, um caráter tranquilizador.

Mas a hiperatividade não começa muito antes, na família?

Tem razão. Há que investir também nas famílias. Mas o  início da vida escolar é o primeiro momento em que temos a oportunidade de um programa abrangente.

Eu admito: ao longo desta nossa conversa telefônica, várias vezes me peguei a conferir e-mails ou a espiar se não recebera um SMS. Como se manifesta na tua vida a cultura do TDAH?


Sobretudo com a imposição de ter de conferir os e-mails. No mais, repito, não tenho aparelho de tevê.


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