13 de janeiro de 2015
por José Pedro Antunes
por José Pedro Antunes
Depois dos
incontáveis perigos a que se viu exposta sua obra, em décadas de masturbações
teológicas, biográficas, psicológicas, filosóficas, sociológicas ou
psicanalíticas, Kafka encontra seu lugar nas estantes de auto-ajuda. Depois de
“Nietzsche para estressados”, Allan Percy decidiu aviar “99 pílulas de
sabedoria para lidar com a loucura do dia a dia”. Isso, com rima e tudo. Título
da obra: “Kafka para sobrecarregados”. No conta-gotas, cada frase, sempre
proverbial, vem acompanhada de inspirados sermões curativos, da lavra de quem,
com eles, mais se vê ajudado.
Em artigo
que circulava na internet em outros tempos, uma estudiosa intuía o potencial do
seu objeto de investigação: “Kafka e o absurdo”. Suponho que no sentido de
mitigar os deletérios efeitos produzidos pelo sertanejo e pelo forró, ambos
universitários, na estudantada de hoje. Cito: “O estudante caminha pelo campus,
às voltas com a falta de sentido da realidade. Com sorte, descobre os livros.
Entre eles, Kafka!” Numa coisa ela acaba acertando, digamos, na barata. Só
mesmo com muita sorte é que pode rolar um livro nessa parada duríssima.
Mas esse tipo
de leitura pode não ser lá muito bom para a saúde psíquica. Certa vez, fui
falar sobre o humor de Kafka numa faculdade. Anfiteatro lotado, e às escuras,
pois dialogaríamos em torno de slides e cenas de filmes projetados no telão,
pedi que microfones sem fio ficassem à disposição dos presentes. E o bicho
pegou brabo. Quase nem precisei, eu mesmo, abrir o bico.
De repente,
um aluno resolveu abrir as entranhas maltratadas por leituras e pela vida. Vai
ver, achou que estava num templo dando testemunho. Descabelava-se, gritava a
plenos pulmões. Foi quando tive que intervir. Enquanto ele estava para cortar
os pulsos no quarto da república, ponderei, na casa ao lado a vizinha estaria
saltitante com a geladeira nova que ganhara do marido, a mocinha da esquina estaria
no bem-bom com o namoradinho novo, e muitos outros exemplos construtivos. E não
é que funcionou? Conteve-se o surtado, serenaram-se os ânimos, seguiríamos em
frente, intimoratos. Não que eu não tenha pensado em mudar de rumo. E
principalmente de ramo. Ganhar muito mais do que ralando como um tonto para ter
o que incluir no Lattes e com que pontuar na planilha.
Mas o que me
levou ao humor de Kafka foram declarações do cineasta Roman Polanski em idos
tempos. Na adaptação famosa de Steven Berkoff, que teve como protagonistas Tim
Roth – na estréia em Londres, em 1969 – e, depois, Mikhail Baryshnikov, coube
ao cineasta e ator polonês despertar, na montagem parisiense, de sonhos
intranqüilos, transformado num inseto monstruoso. Fique o leitor com a tradução
que fiz de passagens da entrevista conduzida pelo compositor francês Michaël
Levinas.
Sabe que
Kafka proibia que se representasse Gregor [...]. Trata-se de uma transformação
animal ou de algo de monstruoso?
Quero te
dizer como Kafka é visto na Polônia, ao contrário do que, com espanto, vim a
descobrir aqui na França. Lá a gente vê muito humor nos textos de Kafka; no
país de origem de Kafka é a mesma coisa. Aqui, Kafka é considerado como um
autor lúgubre, dramático, sombrio, trágico. A dimensão surrealista de Kafka,
que na Polônia é interpretada pelo viés do humor, aqui é tomada com extrema
seriedade.
Viveu esse
papel como um papel paradoxal?
Não como um
papel cômico, mas vejo nele o humor, uma espécie de ironia que, de resto, está
presente em toda a obra de Kafka. Este lado irônico é percebido como dramático.
[...] Sabia
que Kafka ria ao ler, ele próprio, “A Metamorfose”? Se esborrachando de rir?
Veja só, eu
não sabia! Pois é assim que víamos Kafka. É assim que parece natural ler Kafka.
Como eu dizia, aqui fiquei espantado que se falasse de Kafka como um autor
extremamente sombrio, dramático e deprimente. Não é nada disso, de jeito
nenhum!
ilustrações: desenhos de Kafka
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