terça-feira, 23 de junho de 2015

Entre eles, Kafka!

13 de janeiro de 2015
por José Pedro Antunes


Depois dos incontáveis perigos a que se viu exposta sua obra, em décadas de masturbações teológicas, biográficas, psicológicas, filosóficas, sociológicas ou psicanalíticas, Kafka encontra seu lugar nas estantes de auto-ajuda. Depois de “Nietzsche para estressados”, Allan Percy decidiu aviar “99 pílulas de sabedoria para lidar com a loucura do dia a dia”. Isso, com rima e tudo. Título da obra: “Kafka para sobrecarregados”. No conta-gotas, cada frase, sempre proverbial, vem acompanhada de inspirados sermões curativos, da lavra de quem, com eles, mais se vê ajudado.

Em artigo que circulava na internet em outros tempos, uma estudiosa intuía o potencial do seu objeto de investigação: “Kafka e o absurdo”. Suponho que no sentido de mitigar os deletérios efeitos produzidos pelo sertanejo e pelo forró, ambos universitários, na estudantada de hoje. Cito: “O estudante caminha pelo campus, às voltas com a falta de sentido da realidade. Com sorte, descobre os livros. Entre eles, Kafka!” Numa coisa ela acaba acertando, digamos, na barata. Só mesmo com muita sorte é que pode rolar um livro nessa parada duríssima.

Mas esse tipo de leitura pode não ser lá muito bom para a saúde psíquica. Certa vez, fui falar sobre o humor de Kafka numa faculdade. Anfiteatro lotado, e às escuras, pois dialogaríamos em torno de slides e cenas de filmes projetados no telão, pedi que microfones sem fio ficassem à disposição dos presentes. E o bicho pegou brabo. Quase nem precisei, eu mesmo, abrir o bico.

De repente, um aluno resolveu abrir as entranhas maltratadas por leituras e pela vida. Vai ver, achou que estava num templo dando testemunho. Descabelava-se, gritava a plenos pulmões. Foi quando tive que intervir. Enquanto ele estava para cortar os pulsos no quarto da república, ponderei, na casa ao lado a vizinha estaria saltitante com a geladeira nova que ganhara do marido, a mocinha da esquina estaria no bem-bom com o namoradinho novo, e muitos outros exemplos construtivos. E não é que funcionou? Conteve-se o surtado, serenaram-se os ânimos, seguiríamos em frente, intimoratos. Não que eu não tenha pensado em mudar de rumo. E principalmente de ramo. Ganhar muito mais do que ralando como um tonto para ter o que incluir no Lattes e com que pontuar na planilha.

Mas o que me levou ao humor de Kafka foram declarações do cineasta Roman Polanski em idos tempos. Na adaptação famosa de Steven Berkoff, que teve como protagonistas Tim Roth – na estréia em Londres, em 1969 – e, depois, Mikhail Baryshnikov, coube ao cineasta e ator polonês despertar, na montagem parisiense, de sonhos intranqüilos, transformado num inseto monstruoso. Fique o leitor com a tradução que fiz de passagens da entrevista conduzida pelo compositor francês Michaël Levinas.

Sabe que Kafka proibia que se representasse Gregor [...]. Trata-se de uma transformação animal ou de algo de monstruoso?

Quero te dizer como Kafka é visto na Polônia, ao contrário do que, com espanto, vim a descobrir aqui na França. Lá a gente vê muito humor nos textos de Kafka; no país de origem de Kafka é a mesma coisa. Aqui, Kafka é considerado como um autor lúgubre, dramático, sombrio, trágico. A dimensão surrealista de Kafka, que na Polônia é interpretada pelo viés do humor, aqui é tomada com extrema seriedade.

Viveu esse papel como um papel paradoxal?

Não como um papel cômico, mas vejo nele o humor, uma espécie de ironia que, de resto, está presente em toda a obra de Kafka. Este lado irônico é percebido como dramático.

[...] Sabia que Kafka ria ao ler, ele próprio, “A Metamorfose”? Se esborrachando de rir?

Veja só, eu não sabia! Pois é assim que víamos Kafka. É assim que parece natural ler Kafka. Como eu dizia, aqui fiquei espantado que se falasse de Kafka como um autor extremamente sombrio, dramático e deprimente. Não é nada disso, de jeito nenhum!


ilustrações: desenhos de Kafka




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