por José Pedro Antunes
Há quem critique essa minha
insistência em comentar filmes que nem chegaram à cidade. Como se as nossas
salas de exibição fossem o destino obrigatório de toda a filmografia mundial
recente. Como se as locadoras ainda pudessem saciar todas as necessidades de um
cinéfilo. Como se em tudo isso houvesse ainda um funcionamento lógico inteligível.
Mas hoje posso falar de um
filme que não só chegou à cidade, como aí está, nas bancas, ao preço de uma
embalagem de bananas orgânicas. É o número 10 da coleção “Grandes Astros do
Cinema”, da Folha de São Paulo, trazendo Marcello Mastroiani em “O Assassino”
(1961), sua primeira atuação sob a direção de um dos grandes do cinema
italiano: Elio Petri.
Internacionalmente conhecido
ele só se tornaria, no entanto, com “Investigação sobre um cidadão acima de
qualquer suspeita” (Premio do Júri e da Crítica em Cannes, em 1970; Oscar de
Melhor Filme Estrangeiro, em 1971) e “A classe operária vai ao paraíso” (Palma
de Ouro, em 1971). “O Assassino” foi sua primeira realização, num momento em
que terminava o ciclo do neo-realismo e jovens cineastas passavam a acompanhar
o boom econômico e a modernização do país.
Petri não era de falar muito
sobre cinema. Cinéfilo, mas não no sentido francês, afirma a viúva, Paola
Petri, sempre preferiu o cinema mais “popular”. Começa com um policial, de olho
no cinema noir americano – tendência que a nouvelle vague erige em programa. Há
quem veja em “O Assassino” a influência de Kafka, mas sobretudo de “O Processo”
de Orson Welles, lançado naquele mesmo ano. A colaboração de Tonino Guerra, que
acabara de trabalhar com Antonioni em “A Noite”, terá aportado para o roteiro
os temas da incomunicabilidade e do vazio existencial.
Tendo passado a noite na
residência da amante, Martelli (Mastroiani) faz a higiene matinal, quando ouve
baterem à porta. É uma “comitiva”, que ele julga tê-lo procurado como
antiquarista, sem se saber o principal suspeito pelo assassinato da amante. Daí
por diante, ele viverá uma sequência de situações absurdas, tentando entender
por que, sem evidências ou apurações, era tratado como criminoso. Rememora cenas
remotas (a infância no meio rural, o avô, a mãe, a escola, o fascismo) ou
recentes (a amante, os negócios, a entrada em cena da jovem milionária que
viria a ser sua noiva, a noite derradeira com a agora assassinada). São obra de
gênio (Petri era profundo conhecedor da pintura) os enquadramentos, bem como os
flash-backs, recurso raramente utilizado até então no cinema italiano, ou as
imagens de Roma captadas em p&b por Carlo di Palma, fotógrafo que, já
então, fazia plenamente jus ao conceito que o aproximara de Antonioni e o
levaria a trabalhar com Scorsese e Woody
Allen.
No papel do Delegado Palumbo,
um dos grandes atores do teatro italiano da época, Salvo Randone. Descoberto
numa montagem de “Othelo”, na qual contracenava com ninguém menos que Victorio
Gassman – revezavam-se nos papeis de Othelo e Iago. Escolhido, justamente, para
imprimir densidade cultural ao agente da lei que, paradoxal e inesperadamente,
era amante da arte (um Giorgio Morandi na parede atrás da escrivaninha), aberto
ao mundo (uma foto do Rio de Janeiro na parede ao lado) e zeloso guardião da
moral (“Martelli é um homem bom!”, é sua declaração depois de tê-lo
inocentado).
Consta que a censura exigiu
cerca de 80 alterações, além de implicar com o sotaque siciliano dos policiais.
Usou-se então de um estratagema: uma cópia foi feita sob medida para a
aprovação, mas chegaria aos cinemas a versão integral do diretor. Ninguém faz
crítica social impunemente, menos ainda quando pretende mostrar que o fascismo
continua entranhado no cotidiano das pessoas, vivo e atuante. Em circunstâncias
semelhantes, Brecht chegou a afirmar que censores costumam ser os críticos mais
sagazes, com uma compreensão exata do alcance de uma obra e das intenções de um
autor.
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