quinta-feira, 11 de junho de 2015

Ao preço de uma embalagem de bananas orgânicas

23 de julho de 2014
por José Pedro Antunes

Há quem critique essa minha insistência em comentar filmes que nem chegaram à cidade. Como se as nossas salas de exibição fossem o destino obrigatório de toda a filmografia mundial recente. Como se as locadoras ainda pudessem saciar todas as necessidades de um cinéfilo. Como se em tudo isso houvesse ainda um funcionamento lógico inteligível.

Mas hoje posso falar de um filme que não só chegou à cidade, como aí está, nas bancas, ao preço de uma embalagem de bananas orgânicas. É o número 10 da coleção “Grandes Astros do Cinema”, da Folha de São Paulo, trazendo Marcello Mastroiani em “O Assassino” (1961), sua primeira atuação sob a direção de um dos grandes do cinema italiano: Elio Petri.

Internacionalmente conhecido ele só se tornaria, no entanto, com “Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita” (Premio do Júri e da Crítica em Cannes, em 1970; Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1971) e “A classe operária vai ao paraíso” (Palma de Ouro, em 1971). “O Assassino” foi sua primeira realização, num momento em que terminava o ciclo do neo-realismo e jovens cineastas passavam a acompanhar o boom econômico e a modernização do país.

Petri não era de falar muito sobre cinema. Cinéfilo, mas não no sentido francês, afirma a viúva, Paola Petri, sempre preferiu o cinema mais “popular”. Começa com um policial, de olho no cinema noir americano – tendência que a nouvelle vague erige em programa. Há quem veja em “O Assassino” a influência de Kafka, mas sobretudo de “O Processo” de Orson Welles, lançado naquele mesmo ano. A colaboração de Tonino Guerra, que acabara de trabalhar com Antonioni em “A Noite”, terá aportado para o roteiro os temas da incomunicabilidade e do vazio existencial.

Tendo passado a noite na residência da amante, Martelli (Mastroiani) faz a higiene matinal, quando ouve baterem à porta. É uma “comitiva”, que ele julga tê-lo procurado como antiquarista, sem se saber o principal suspeito pelo assassinato da amante. Daí por diante, ele viverá uma sequência de situações absurdas, tentando entender por que, sem evidências ou apurações, era tratado como criminoso. Rememora cenas remotas (a infância no meio rural, o avô, a mãe, a escola, o fascismo) ou recentes (a amante, os negócios, a entrada em cena da jovem milionária que viria a ser sua noiva, a noite derradeira com a agora assassinada). São obra de gênio (Petri era profundo conhecedor da pintura) os enquadramentos, bem como os flash-backs, recurso raramente utilizado até então no cinema italiano, ou as imagens de Roma captadas em p&b por Carlo di Palma, fotógrafo que, já então, fazia plenamente jus ao conceito que o aproximara de Antonioni e o levaria  a trabalhar com Scorsese e Woody Allen.

No papel do Delegado Palumbo, um dos grandes atores do teatro italiano da época, Salvo Randone. Descoberto numa montagem de “Othelo”, na qual contracenava com ninguém menos que Victorio Gassman – revezavam-se nos papeis de Othelo e Iago. Escolhido, justamente, para imprimir densidade cultural ao agente da lei que, paradoxal e inesperadamente, era amante da arte (um Giorgio Morandi na parede atrás da escrivaninha), aberto ao mundo (uma foto do Rio de Janeiro na parede ao lado) e zeloso guardião da moral (“Martelli é um homem bom!”, é sua declaração depois de tê-lo inocentado).

Consta que a censura exigiu cerca de 80 alterações, além de implicar com o sotaque siciliano dos policiais. Usou-se então de um estratagema: uma cópia foi feita sob medida para a aprovação, mas chegaria aos cinemas a versão integral do diretor. Ninguém faz crítica social impunemente, menos ainda quando pretende mostrar que o fascismo continua entranhado no cotidiano das pessoas, vivo e atuante. Em circunstâncias semelhantes, Brecht chegou a afirmar que censores costumam ser os críticos mais sagazes, com uma compreensão exata do alcance de uma obra e das intenções de um autor.


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