segunda-feira, 1 de junho de 2015

Os novos zumbis

20 de janeiro de 2014

[Javier Marías, em sua coluna semanal no El País, Madri, 21/04/2013. Tradução: Zé Pedro Antunes]

Uma carta de um leitor me fez rir há alguns dias, porque, sob a epígrafe “Somos mal educados”, pautava o que vez ou outra venho apontando desde os anos 90: em 1995 publiquei, noutra parte, dois artigos respectivamente intitulados “Descorteses” e “Bestiais”, lamentando a progressiva perda das formas mais elementares de educação na Espanha, fato que chamava a atenção – eu ria – dos amigos estrangeiros que aqui vinham. Ficavam perplexos ao constatar que poucos diziam “por favor” ou “gracias”, ou “perdón” se neles esbarrassem pela rua; ao perceber que muitos camareiros e funcionários os tratavam com informalidade invariável e escassa urbanidade: “Deseja, senhor?”, como se os clientes fossem um incômodo, ou intrusos.

Em seguida observei outros costumes reinantes. É tão raro que alguém ceda a passagem como minimamente se “estreite” ao cruzar com o outro, o que sempre terá de fazer se não quiser levar uma trombada. Por algum tempo experimentei não arredar pé de propósito, para ver no que dava: os que vinham de frente me atropelavam quase sem exceção, nem sinal de desviar um milímetro, era como se eu não existisse. [...]

Em viagens de trabalho ao exterior observo comportamentos até há pouco impensáveis. Os editores que te convidam para apoiar  a promoção de um livro com a tua presença supérflua (parece que hoje importa mais a cara do autor e seu blablablá do que sua obra; “the singer, not the song”, como me disse o amigo Eric Southworth) costumam te dispensar um tratamento horrível: mentem, enganam, exploram, enviam cronogramas que logo se ampliam traiçoeiramente até o esgotamento, abusam ao extremo, cobram sua libra de carne na pele do escritor exausto. [...]

A última novidade: você viaja de uma cidade a outra, de trem, de carro ou de avião, acompanhado por uma pessoa do departamento de promoção, normalmente jovem. Pois mal toma assento, e sem dizer palavra nem perguntar se te importa, essa pessoa puxa o iPhone, iPad ou algo similar, te dá o perfil e as costas, finge ter evaporado e se encapsula em seu “tuiteio”, em seus SMS, Whatsapp, Skype ou o que seja, podendo não erguer mais os olhos em duas ou três horas de trajeto.



Devo dizer que até prefiro: quem passa o dia soltando baboseiras em entrevistas e eventos, a última coisa que deseja é seguir falando nos tempos mortos ou livres. O que chama a atenção é que esses encarregados da imprensa, de quem você é hóspede, nem façam menção de oferecer um mínimo de conversação, nem consultem a tua preferência, nem se desculpem por seu absoluto desinteresse pelo próximo. Creio que não se dão conta da descortesia, quer dizer, deve lhes parecer a coisa mais natural do mundo, darão por certo que todos carregamos iPhones e iPads, e que a todos nos atrai muito mais trocar mensagens com os ausentes que partilhar com quem está presente. A verdadeira conversação pertence ao passado, a quem interessar possa.

Os que não carregamos aparelhos devemos caminhar pela rua com oito, não apenas quatro olhos. Antes não era incomum admoestar alguém que se chocasse contigo: “Olha por onde anda”. Hoje seria improcedente e absurdo, não se espera mesmo que ninguém olhe. Pessoas demais seguem absortas em suas engenhocas e jamais levantam os olhos. Ignoram os edifícios, os parques, a inesgotável fauna das cidades, o que acontece ao redor. Mais ainda, pisam ou derrubam um transeunte, seja um ancião de bengala e passo frágil, seja uma mulher grávida ou com três crianças. Devo confessar que tanto me irritam esses zumbis eletrônicos, sem curiosidade por nada físico, que só desejo – por instantes, pois logo retiro meu pensamento excessivo – que um ônibus se choque contra eles enquanto babam em suas telas imbecilizantes.



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