7 de outubro de 2014
por José Pedro Antunes
por José Pedro Antunes
Se quiser saber sobre a literatura austríaca, no que se apresenta na rede ou nas histórias da literatura alemã, o leitor poderá se sentir um tanto confuso. Nestas, a literatura austríaca, bem como a da Suíça alemã e, por algumas décadas de Guerra Fria, a da Alemanha Oriental invariavelmente se constituem em apêndices muito breves. Na rede, em textos mais recentes, descobrirá que a hesitação entre “literatura austríaca” e “literatura da Áustria” se impõe como reveladora de um impasse. Desde que Goethe cunhou o conceito de “Literatura Universal” (Weltliteratur), falar em literaturas nacionais se tornou problemático. Um dos motivos para que Guimarães Rosa apostasse tanto na tradução de sua obra para o alemão tinha a ver com o desejo de torná-la universal. Vale dizer que sua obra cumpre, à perfeição, o dito de que quanto mais regional, mais universal será uma literatura.
Em Curitiba, pude presenciar a leitura dramática, nos respectivos idiomas, de textos de brasileiros e alemães, para uma plateia que, obviamente, se supunha bilíngue. Dentre os brasileiros, Rosa era mesmo incontornável. Mas João Silverio Trevisan e Michel Laub, com algumas obras já traduzidas para o alemão, certamente se incluíam como aspirantes à universalidade.
Quando, a pedido da editora Cosac Naify, andei à procura de uma foto de Peter Bürger, a ser incluída na edição de “Teoria da Vanguarda”, foi com surpresa que encontrei, em meio à extensa lista de celebridades literárias universais, um único brasileiro: Milton Hatoum. Ele que, por acaso, não constava do rol dos autores lidos no evento em Curitiba.
Mas vejamos a informação de um site oficial sobre a Áustria: “Apesar de sua fama como terra de artistas e cientistas, a Áustria sempre foi também uma terra de poetas, escritores e romancistas. É o local de nascimento dos romancistas Arthur Schnitzler, Stefan Zweig, Bertha von Suttner (primeiro Nobel da Paz), Marie Ebner von Eschenbach, Oswald von Wolkenstein, Elfriede Jelinek (Prêmio Nobel de Literatura, 2004), Thomas Bernhard, Franz Kafka, Robert Musil e dos poetas Georg Trakl, Franz Werfel, Franz Grillparzer, Rainer Maria Rilke, Adalbert Stifter e Karl Kraus. Uma menção à parte é dada a Hugo von Hoffmansthal, poeta e romancista, símbolo da Viena fin-de-siècle.” E ainda um parágrafo tão breve quanto capenga: “Nos dias atuais, alguns dos romancistas e dramaturgos mais famosos são Elfriede Jelinek (Nobel de Literatura) e o escritor Peter Handke.”
Sobre Schnitzler, sabemos do paralelo entre sua obra e os escritos de Freud, bem como da prestigiosa adaptação de uma de suas narrativas para o cinema por Stanley Kubrick: “De olhos bem fechados”. Que Zweig exilou-se no Brasil, fugindo do nazismo, e aqui se suicidou juntamente com a esposa, depois de ter cunhado, no título de um livro, uma formulação que já soou como profecia: “Brasil, País do Futuro”. Se Kafka, Musil, Trakl, Rilke e Kraus – erra o informe ao dá-lo como poeta – estão entre os estrangeiros mais traduzidos e cultuados, dificilmente o leitor brasileiro pensará neles como austríacos. São universais, no quadro da assim chamada “literatura de expressão alemã”.
Sobre Hoffmansthal, adianto que Pedro Reis Lima, amigo de velha data e hoje professor de alemão na “Zwei” em São Carlos, se prepara para nos oferecer um estudo acadêmico alentado. Sobre Jelinek, consta que ela própria terá ficado surpresa com a premiação da Academia Sueca, tendo afirmado que Handke seria mais merecedor.
Foi como tradutor de Handke que participei do “Simpósio sobre Literatura Austríaca”, como queria Alexandre Flory em seu convite. Ou “da Áustria”, como insistiriam, ao longo dos trabalhos, o austríaco Helmut Gollner (autor de uma história da literatura da Áustria) e os alemães Wolfgang Bock e Martin Huber. Riram ao ouvir que eu, honestamente, acho difícil pensar Peter Handke como austríaco.
Em artigo dos anos 1980, Hubert Fichte se perguntava quem, dentre os escritores alemães, seria efetivamente Weltliteratur. Günter Grass? Porque ‘O Tambor’ ocupava um lugar na estante de Liz Taylor? Quanto ao próprio criador do conceito, Goethe, ele pegava pesado: “No máximo como Instituto”.
Para um de seus comentaristas, Fichte se conta entre os “autores que tiraram férias da questão alemã”. O interesse pelas religiões afroamericanas fez com que ele viesse viver algum tempo no Brasil. Em “Ensaio sobre a puberdade”, minha primeira aventura como tradutor, ele funde, às vezes numa só frase, a miséria e o sincretismo baiano à cena teatral e homossexual de Hamburgo.
Quando do lançamento, João Silverio Trevisan escreveu resenha entusiasmada para a Folha de São Paulo. Ele que, recentemente, voltava a falar desse livro como uma descoberta inspiradora. Foi em Curitiba, onde leria passagens do recém-lançado “O rei do cheiro”. Sua presença num congresso de germanistas tinha uma justificativa: “Ana em Veneza”, um de seus livros de maior impacto entre nós, ganhou tradução para o alemão.
Perguntei sobre a recepção naquele país. Irrelevante, ele me garantiu, nem uma só resenha considerável. Da parte dos editores, ouviu que escrevera um livro para ganhar o Nobel, mas os alemães não toleram que estrangeiros falem sobre suas circunstâncias. Pudera, ele prosseguia, basta imaginar o assombro de um alemão à leitura das descrições dos jantares que ele, decididamente, copiara dos livros de Thomas Mann, um dos protagonistas de “Ana in Venedig”.
Não foi das mais auspiciosas a ocasião do nosso reencontro. Ao chegar ao Memorial da Cidade, onde se daria a leitura, julguei que houvesse algum engano. Mas o porteiro me garantiu que não. O escritor estava para chegar. E chegou. E éramos três: ele, uma estudante ligada à organização e o autor deste relato. Que nos tranquilizássemos, ele nos aconselhava, aos 70 você já não se espanta mais com nada.
Pior foi ouvir que, sem espaço suficiente para armazenamento, a editora Record decidira se livrar de enormes quantidades de livros. Entre eles, justamente, a edição inteira de “O rei do cheiro”, que, os números diziam, não tinha mercado. Ainda lhe foi dado salvar um certo número de exemplares. Garantia talvez, imaginei, de que chegou mesmo a ser publicado. Trabalho árduo, intensa pesquisa, com estadas ali mesmo, em Curitiba, para entrevistas com gente ligada a O Boticário. Em São Paulo, a Natura chegou a elaborar a seu pedido uma fórmula, para ser incluída no romance. Não dava para contornar o trocadilho: não sobrou nem cheiro.
Só vim a saber o motivo do fracasso no Memorial, um dos muitos edifícios históricos restaurados e destinados à cultura na capital paranaense, ao ouvir que, no Paço da Liberdade, onde hoje, aristocraticamente, o Sesc se instala, eu perdera um grande acontecimento: a abertura da exposição “Thomas Bernhard e seus seres vitais”, com direito a leituras, arrebatadoras, do historiador Helmut Gollner, que afinal se consagrou como performático. Terminado o congresso, ainda tive um dia livre para conviver com as fotografias, os documentos e os manuscritos do espólio do escritor, trazidos pelo Consulado da Áustria.
Eu dizia que acho difícil pensar Handke como austríaco. O que não me ocorre à leitura de Bernhard, que, austríaco nenhum discordaria, tem muito mais a ver com o país que, paradoxalmente, odiou a vida inteira, com todas as forças. Num dos ambientes da exposição, havia uma sessão corrida, com registros que incluíam entrevistas concedidas pelo escritor ao longo da carreira. Numa das passagens, o entrevistador lhe pergunta se, afinal, a Áustria não acabava sendo a janela pela qual ele via o mundo. O sarcasmo da resposta só poderia ter mesmo levado ao delírio os jornalistas: “Uma janela eu não diria. Um postigo talvez.”
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