terça-feira, 2 de junho de 2015

Tem um orelhão ali na esquina

29 de janeiro de 2014
por José Pedro Antunes

telefone público pintado como cérebro

Domingo último, 26/01/2014, o colunista Rodrigo Brandão, da Tribuna Impressa de Araraquara, incluía meu nome num pequeno rol de cinéfilos “inquestionáveis”, em artigo que terminava com o vaticínio de que “Django Livre” está fadado a se tornar um clássico. Para mim, já é um clássico. Como “Cães de Aluguel”, “Pulp Fiction”, “Jackie Brown”, “Kill Bill”, “Bastardos Inglórios”, enfim, a filmografia inteira de Quentin Tarantino. Obras que não me canso de rever. E cada vez que as revejo, descubro-as ainda melhores. E não se trata de um vício solitário. Facilmente reuniríamos uma plateia entusiasmada de tarantinófilos para revê-las e comentá-las.

Uma ideia: um ciclo de filmes de Tarantino. Outra ideia: um ciclo reunindo cinéfilos notórios (não sei se eu mesmo caberia na minha própria lista), cada qual escolhendo uma película para comentar. Olha eu aqui de volta aos tempos em que ter ideias e fazer com que elas se concretizassem era a rotina. Hoje tudo esbarra em burocracia: editais, projetos, planilhas e relatórios. Às vezes tenho a impressão de que nenhum impulso criativo nos visitará mais, nunca. É ver as programações culturais e constatar: entre tributos e resgates, uma mesmice de dar desgosto. Ninguém mais troca o (indigestamente) certo pelo (saudavelmente) duvidoso. Para alguns programadores, chego a pensar, talvez a existência de plateias seja mesmo dispensável.

Em “A memória que me contam” (2013), Lucia Murat quis que Irene Ravache voltasse a ser, 24 anos depois, Irene, a protagonista de “Que bom te ver viva” (1989). Na releitura atualizada da nossa história política dos anos 1960 a esta parte, o elenco conta com uma participação especialíssima: Franco Nero. Ele que em “Django Livre” faz uma ponta em homenagem ao “Django” de Sergio Corbucci, inspiração declarada do cineasta americano, que tem agora mais um western na agulha.

Ainda no domingo, no mesmo jornal, o cronista Ignácio de Loyola Brandão nos remetia a um dos livros mais influentes do século XX: “O Apanhador no Campo de Centeio”. Foi ao passar por um cinema e se deparar com um cartaz que anunciava “Dear Ruth” (entre nós, horrorosamente, “Ruth Querida”), com William Holden e Joan Caufield, que Salinger batizou seu personagem: Holden Caulfield. (Digite esse nome no google e boa viagem.) Se ainda não leu, só ganhará em fazê-lo. Mas prepare-se para um incômodo: algumas soluções da tradução brasileira estão mais do que vencidas. Depois de tantas edições, já era tempo de se pensar, se não numa nova tradução, ao menos em atualizações que nos livrassem desse mal desnecessário.

Tem-se como desaconselhável, nas traduções, o uso de gírias ‘da hora’. É da natureza desses usos que o prazo de validade seja exíguo. Como não costuma ser longa a vida das piadas. Em “Sonhos de um sedutor” [“Play it again, Sam”], com Woody Allen dirigido por Herbert Ross, o personagem Dick (Tony Roberts) cultiva uma obsessão telefônica. Aonde quer que chegue, trata imediatamente de informar os números nos quais poderá ser flagrado naquele e nos próximos instantes. Na primeira ocorrência, a esposa (Diane Keaton, pela primeira vez ao lado de Allen) lhe diz: “Tem um orelhão ali na esquina. Quer que eu vá anotar o número? Logo vamos estar passando por lá”. E ele segue o filme inteiro com essa piada, vencida, que os “novos zumbis” (cito Javier Marías) não saberão entender. Eles que viram a luz deste mundo não na forma de uma lâmpada elétrica, como o Oskar Mazerath de “O Tambor” (romance de Günter Grass transformado em filme por Volker Schlöndorff), mas numa telinha de LED.


E já não haverá mais como nos livrarmos desse mal, convenhamos, só raro em raro deveras necessário? E haverá mesmo o que não se possa resolver no orelhão ali da esquina? Em 1971, em Porto Seguro, havia um único aparelho no povoado. Pregado num poste de madeira. Era o “pau-de-conversa”. E o mais era a natureza em seu sossego. E silêncio.


imagem: orelhão na avenida Paulista exibe a obra O que você tem na cabeça?, da publicitária Carla Pires de Carvalho Fernandes. Foto: Felipe Rau/AE


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