10 de fevereiro de 2015
por José Pedro Antunes
por José Pedro Antunes
Em entrevista recente,
Jean-Claude Carrière declara ter crescido numa casa que não tinha livros. Em
“Não contem com o fim do livro”, o leitor pode acompanhar um saboroso diálogo
entre o escritor e roteirista francês e Umberto Eco, ambos bibliófilos. Mui a
miúdo eles se referem ao nosso José Mindlin, que com absoluta certeza tampouco
teria podido viver senão rodeado de livros.
Também me lembro de ter
ouvido a poeta Alice Ruiz contar do acontecimento que foi ter sido presenteada
na escola com um livro, ela que crescera numa casa onde só havia um exemplar da
Bíblia. Também o poeta Ferreira Gullar relatava dia desses o início de sua
aventura, praticamente a partir do nada, os primeiros anos vividos num meio
pouco afeito à leitura.
O mesmo, como se sabe, não se
deu com Chico Buarque, e nem com o narrador-personagem de “O Irmão Alemão”,
tendo vivido, ambos, numa casa cujas paredes lhes pareciam feitas de livros. Já
um meu conterrâneo, o poeta Ulisses Tavares, no que deveria ter sido um
stand-up com poemas satíricos, em Ribeirão Preto, houve por bem se alongar em
considerações sobre o desaparecimento, em escala global, dos leitores.
Entre outras coisas, ele
discordava das ações governamentais que consistem em distribuir livros,
inclusive os dele próprio, a pessoas que não sabem ler, não estão sendo
letradas. Penso numa aluna que orientei em projeto de iniciação científica. No
primeiro passo, já ela se deparara com uma dificuldade incontornável. Ainda que
se esforçasse para ler “O Processo”, de Kafka, ela desabafava: “eu me canso
muito rápido”.
Pensei que ela talvez devesse
consultar um oftalmologista, com o que estaríamos salvos, todos. Quando teremos
peito para assumir que a progressão continuada já projeta sua ausência de luzes
sobre a universidade? Pode-se dizer que passa a comprometer mesmo os resultados
dos programas de pós-graduação, como é fácil constatar à leitura de algumas
dissertações e teses ultimamente produzidas.
Ao mencionar os luminares da
literatura que cresceram em casas sem livros, e que se fizeram leitores e
autores, caberia alimentar a esperança de que, da massa atual dos brasileiros
que frequentam de ponta a ponta o nosso sistema de ensino, possa ainda surgir,
e apenas milagrosamente, um que outro novo exemplar da espécie. O que, no entanto,
estaria longe de solucionar o problema abordado pelo poeta sorocabano, que
concluía seu raciocínio com a conclusão de que a escola tem que voltar a
promover o “letramento”.
Para que serve hoje a escola
no Brasil?, ele se perguntava. É o lugar onde as pessoas vão comer. Onde
eventualmente se fazem festas, quermesses, aonde se vai dar umas voltas,
espécie de clube popular. Poucos dias depois, tive que ir ao campus e dei com o
restaurante em reforma, prevista para ser concluída no prazo de um ano. De par
com a expulsão de 17 alunos, o não funcionamento do restaurante faz prever um
conturbado início de ano letivo. Mas, para além das implicações materiais, no
caso do restaurante, é no plano simbólico que residem, a meu ver, ameaças ainda
mais perturbadoras. Tendo em conta a fala do poeta, é como se o campus
subitamente tivesse perdido a razão de existir.
Detenho-me na palavra
“letramento”, pensando que poucos dentre os meus alunos demonstram ter clareza
sobre o que é, afinal, um curso de letras. Deixou de ser óbvio e consensual que
a atividade da leitura seja a razão de ser da nossa lida. Vale também para as
instâncias que nos avaliam. Não sei quantos de meus pares ainda podem se
entregar ao ócio indispensável ao cultivo das coisas do espírito. Se estarrece
constatar que, numa classe de trinta alunos, dois apenas chegam à universidade
dotados do hábito da leitura, mais estarrecedor é saber que podem vir a
perdê-lo em muito pouco tempo, pois, ai de todos nós, vivemos numa casa cheia
de livros, mas com cada vez menos chances de manter ou desenvolver o amor pelo
convívio com eles.
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