domingo, 7 de junho de 2015

De figurinhas, figurões & figuraças

21 de maio de 2014
por José Pedro Antunes

Na infância, fui de colecionar figurinhas. Mas não de futebol. Preferia as que tinham a ver com o cinema: “Marcelino, Pão e Vinho”, “A Dama e o Vagabundo”, “O Rei dos Reis”. Hoje a minha praia são as imagens em movimento, com resistência praticamente nenhuma às coleções que são lançadas nas bancas. E eis que aí vem mais uma delas. Um texto promocional fala da eternidade conquistada por divas e astros da sétima arte. E uma coleção dessas, pensei, também acaba fazendo de nós um pouquinho imortais. É como se, ao longo de semanas, nada pudesse nos destituir da plenitude dos dias. De “Levada da Breca”, com Cary Grant e Katherine Hepburn, a “Sissi”, com Romy Schneider no esplendor dos seus 16 anos, o que se promete é um desfile dos maiores ícones da história do cinema. A ausência de menção aos realizadores não faz senão remeter ao cinema que se cultuava antes da eclosão da nouvelle vague. Quando se falava de um filme, o que importava eram tão-somente os protagonistas.
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Em Cannes, um filme de Abel Ferrara causa polêmica: “Welcome to New York”. Para interpretar Dominique Strauss-Kahn, controvertido personagem da história francesa recente, ninguém menos que Gerard Dépardieu, com o peso da idade, de sua trajetória maiúscula e da nacionalidade russa recém-adquirida.
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Na Alemanha, é notícia quente a liberação, depois de quarenta anos, de “Baal”, filme que Volker Schlöndorff rodou em 1969, e que se baseava na a peça homônima de Bertolt Brecht para falar da revolta estudantil de 68. No papel-título, Rainer Werner Fassbinder. A seu lado, uma outra jovem atriz principiante: Margarethe von Trotta. Tal como Schlöndorff, ambos fariam carreiras brilhantes por trás das câmeras, tornando-se expoentes do Novo Cinema Alemão. Consta que a proibição atendia a um pedido de Helene Weigel, uma das viúvas do dramaturgo. Para ela, o problema era o filme “remeter aos tempos juvenis e anárquicos do autor”.
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Blue is the warmest colour

Depois de percorrer todo um pântano de salivação a respeito, só me resta concluir que o bombardeio promovido pela mídia e a orquestrada reação contra as cenas de sexo pouco têm a ver com a grandeza de “Azul é a cor mais quente”. E nisso devo discordar do cineasta tunisiano Abdellatif Kechiche, que com as palavras, a partir de Cannes, não parece ter a mesma habilidade e mesma sensibilidade que sobejamente demonstra no trato com as imagens. Ele lamenta ter feito “um filme sujo”, como assim? Detenho-me numa sequência que me pareceu exemplar do seu modus operandi.

Num final de tarde, Adèle só vai descobrir que não está só em casa quando chega ao quintal e se vê mimada com uma festa-surpresa. Feitos os cumprimentos de praxe e apagadas as velinhas, os jovens, colegas de escola em sua maioria, entregam-se à dança, embalados por uma música “étnica” – o filme nos mostra uma França já perfeitamente multicultural – com tratamento tecno-pop. Por algum tempo, a câmera se detém na aniversariante, a captar-lhe a sensualidade adolescente um tanto desajeitada, para, de súbito, ganhar distância daquilo que, por instantes, parecia ser quase uma “rave”, uma cena intensa e povoada. E só então se poderá avaliar suas reais dimensões: algumas poucas pessoas reunidas num quintal acanhado, em meio às casas de um subúrbio.

Pois esse seria também o modo de ver “O azul é a cor mais quente”. Vê-lo apenas pela atração (convenhamos, irresistível) das cenas de sexo entre as garotas (aliás, belíssimas, as garotas e as cenas) acaba por transformar uma obra-prima do cinema contemporâneo em tratado promocional do lesbianismo, como insistem alguns comentadores indignados. Ou em pornografia, como equivocadamente acusa Julie Maroh, a autora de “La vie d’Adèle”, romance gráfico no qual o cineasta buscou inspiração. Vale registrar que, ao longo da sessão, as cenas de sexo foram invariavelmente pontuadas pelo riso nervoso de algumas senhoras e senhoritas. Algo que eu já tivera a oportunidade de amargar numa apresentação de “Brokeback Mountain”, durante a qual eram os rapazes (estudantes universitários) a inadvertidamente ostentar suas inseguranças.

Conquistada a imprescindível distância e feitas as ressalvas às circunstâncias que cercaram a exibição, não há negar, “Azul é a cor mais quente” é obra da maior relevância. Por mais que o cineasta, as atrizes e a recepção continuem a tropeçar em visões parciais ou equivocadas. São quase três horas, duração quase imperceptível, das mais requintadas sutilezas, da mais refinada sensibilidade. A mesma sensibilidade que Kechiche demonstrara, à farta, em “O Segredo do Grão”, ao tornar visível sentimentos íntimos que as imagens (as pornográficas, sobretudo) normalmente não conseguem alcançar. E isso tem um nome: é arte.

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