por José Pedro Antunes
Na infância, fui de colecionar
figurinhas. Mas não de futebol. Preferia as que tinham a ver com o cinema:
“Marcelino, Pão e Vinho”, “A Dama e o Vagabundo”, “O Rei dos Reis”. Hoje a
minha praia são as imagens em movimento, com resistência praticamente nenhuma
às coleções que são lançadas nas bancas. E eis que aí vem mais uma delas. Um
texto promocional fala da eternidade conquistada por divas e astros da sétima
arte. E uma coleção dessas, pensei, também acaba fazendo de nós um pouquinho
imortais. É como se, ao longo de semanas, nada pudesse nos destituir da
plenitude dos dias. De “Levada da Breca”, com Cary Grant e Katherine Hepburn, a
“Sissi”, com Romy Schneider no esplendor dos seus 16 anos, o que se promete é
um desfile dos maiores ícones da história do cinema. A ausência de menção aos
realizadores não faz senão remeter ao cinema que se cultuava antes da eclosão
da nouvelle vague. Quando se falava de um filme, o que importava eram
tão-somente os protagonistas.
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Em Cannes, um filme de Abel
Ferrara causa polêmica: “Welcome to New York”. Para interpretar Dominique
Strauss-Kahn, controvertido personagem da história francesa recente, ninguém
menos que Gerard Dépardieu, com o peso da idade, de sua trajetória maiúscula e
da nacionalidade russa recém-adquirida.
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Na Alemanha, é notícia quente
a liberação, depois de quarenta anos, de “Baal”, filme que Volker Schlöndorff
rodou em 1969, e que se baseava na a peça homônima de Bertolt Brecht para falar
da revolta estudantil de 68. No papel-título, Rainer Werner Fassbinder. A seu
lado, uma outra jovem atriz principiante: Margarethe von Trotta. Tal como
Schlöndorff, ambos fariam carreiras brilhantes por trás das câmeras,
tornando-se expoentes do Novo Cinema Alemão. Consta que a proibição atendia a
um pedido de Helene Weigel, uma das viúvas do dramaturgo. Para ela, o problema
era o filme “remeter aos tempos juvenis e anárquicos do autor”.
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Depois de percorrer todo um pântano de salivação a respeito, só me resta concluir que o bombardeio promovido pela mídia e a orquestrada reação contra as cenas de sexo pouco têm a ver com a grandeza de “Azul é a cor mais quente”. E nisso devo discordar do cineasta tunisiano Abdellatif Kechiche, que com as palavras, a partir de Cannes, não parece ter a mesma habilidade e mesma sensibilidade que sobejamente demonstra no trato com as imagens. Ele lamenta ter feito “um filme sujo”, como assim? Detenho-me numa sequência que me pareceu exemplar do seu modus operandi.
Num final de tarde, Adèle só
vai descobrir que não está só em casa quando chega ao quintal e se vê mimada
com uma festa-surpresa. Feitos os cumprimentos de praxe e apagadas as velinhas,
os jovens, colegas de escola em sua maioria, entregam-se à dança, embalados por
uma música “étnica” – o filme nos mostra uma França já perfeitamente
multicultural – com tratamento tecno-pop. Por algum tempo, a câmera se detém na
aniversariante, a captar-lhe a sensualidade adolescente um tanto desajeitada,
para, de súbito, ganhar distância daquilo que, por instantes, parecia ser quase
uma “rave”, uma cena intensa e povoada. E só então se poderá avaliar suas reais
dimensões: algumas poucas pessoas reunidas num quintal acanhado, em meio às
casas de um subúrbio.
Pois esse seria também o modo
de ver “O azul é a cor mais quente”. Vê-lo apenas pela atração (convenhamos,
irresistível) das cenas de sexo entre as garotas (aliás, belíssimas, as garotas
e as cenas) acaba por transformar uma obra-prima do cinema contemporâneo em
tratado promocional do lesbianismo, como insistem alguns comentadores
indignados. Ou em pornografia, como equivocadamente acusa Julie Maroh, a autora
de “La vie d’Adèle”, romance gráfico no qual o cineasta buscou inspiração. Vale
registrar que, ao longo da sessão, as cenas de sexo foram invariavelmente
pontuadas pelo riso nervoso de algumas senhoras e senhoritas. Algo que eu já
tivera a oportunidade de amargar numa apresentação de “Brokeback Mountain”,
durante a qual eram os rapazes (estudantes universitários) a inadvertidamente
ostentar suas inseguranças.
Conquistada a imprescindível
distância e feitas as ressalvas às circunstâncias que cercaram a exibição, não
há negar, “Azul é a cor mais quente” é obra da maior relevância. Por mais que o
cineasta, as atrizes e a recepção continuem a tropeçar em visões parciais ou
equivocadas. São quase três horas, duração quase imperceptível, das mais
requintadas sutilezas, da mais refinada sensibilidade. A mesma sensibilidade
que Kechiche demonstrara, à farta, em “O Segredo do Grão”, ao tornar visível
sentimentos íntimos que as imagens (as pornográficas, sobretudo) normalmente
não conseguem alcançar. E isso tem um nome: é arte.
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