[Excerto de Zum Tode Günter
Grass: Abschied von einer Jahrhundertfigur (Sobre a morte de Günter Grass:
Despedida de um personagem do século), de Sebastian Hammelehle (Spiegel Online,
13/04/2015). Tradução: Zé Pedro Antunes.]
Günter Grass (à esquerda, com
Dieter Wellershoff) no encontro do Grupo 47 em 1964
O próprio Günter Grass, na
verdade, não tratou de facilitar as coisas para si mesmo ao declarar, já em
1988: “Eu sou a soma dos meus personagens, inclusive dos homens da SS”.
Ninguém reconheceu, então, o
peso dessa afirmação. Em entrevista televisiva a Ulrich Wickert, depois do
lançamento de Beim Häuten der Zwiebel [Descascando a cebola], em 2006, o
escritor falava sobre seus meses na SS-Panzer-Division “Frundsberg”: “Isso
sempre me ocupou, esteve sempre presente, e eu era da opinião de que bastava
ter feito o que fiz como escritor, como cidadão deste país, e que era o oposto
do que me marcou na juventude durante o nazismo.”
Mesmo soando como se o
escritor, no caso, se alçasse a juíz em causa própria, para então se desonerar
com uma absolvição – e mesmo que em
absoluto não se pretenda compensar o período na Waffen-SS com os méritos
ulteriores: impossível não reconhecer-lhe os maiores méritos pela abertura
social da República Federal, a luta contra a política de colocar um ponto final
no debate sobre o passado nazista (Schlussstrich-Politik) e a tendência a
atenuar-lhe a gravidade (Vergangenheits-Beschönigung).
Grass – segundo ele próprio,
inventor da fórmula “ousar mais democracia”, com a qual Willi Brandt deixou sua
marca no século passado – se atirava com vontade em quase todas as
confrontações – ainda que, ao criticar Israel com o poema Was gesagt werden
muss [O deve ser dito], de 2012, tenha causado estranheza justamente nos
correligionários de outrora.
Como escritor, de há muito
ele se fizera uma instituição social, um personagem do século, como na
literatura de língua alemã – tendo sido Thomas Mann o último da espécie – nem
mesmo Brecht havia logrado. Mas nada lhe era mais estranho do que a postura
aristocrática de Mann. Tinham algo de plebeu o tom áspero e a clareza verbal
com que subia ao ringue.
Seu intelecto parecia
aterrado. Radical de esquerda ele nunca foi, diferentemente de outros
companheiros de geração como Martin Walser e Hans-Magnus Enzensberger, mas por
muito tempo ocupou o lado esquerdo do espectro. A história da cultura de
protesto na República Federal só pode ser reconstituída tendo-o como
referência. Se antes ele se engajara contra as leis de exceção, o acordo
bilateral da Otan ou o modo como se deu a reunificação, na velhice – ele que
uma vez declarara aborrecê-lo o conceito de “literatura engajada”, um modismo
dos anos 60 –, tomou posição contra o poderio dos bancos, pregou o abandono do
capitalismo, subscreveu manifesto de oposição à deposição de lixo atômico em
Gorleben.
Nascido aos 16 de outubro de
1929 em Langfuhr, periferia de Danzig, hoje Gdansk, seu pai era comerciante de
especiarias e a mãe, fato que Grass gostava exorcizar e mitificar, provinha da
etnia eslava dos cassúbios. Cresceu numa casa de dois cômodos, com cozinha
mínima e toilette no corredor. Quarto das crianças não havia: “Minha irmã e eu
tínhamos, cada qual, um nicho sob os parapeitos das janelas da sala. Ali eu
tinha meus livros e minhas coisas.”
Ainda que, depois de um
período como aprendiz de cantaria entre 1948 e 1952, tenha estudado escultura e
artes gráficas na Academia de Arte de Düsseldorf, Grass sempre se considerou um
autodidata: “Fui um jovem inculto, ou apenas parcialmente culto. Aos 15, a
escola acabou para mim e, quando pela primeira vez eu comecei a escrever a
sério um manuscrito mais longo, eu sequer dominava a ortografia alemã.” O
manuscrito de Die Blechtrommel [O Tambor] estava cheio de erros ortográficos.
O elã mordaz permaneceu com
ele até o final. Um poeta alemão chamou-o certa vez de “Mister Testosterona”.
Em suas memórias, o crítico Fritz J. Raddatz, seu amigo ao longo da vida,
escreveu: “Ele sempre tem esse gesto centralizador, dominador, do ‘agora eu
quero falar’; e fica nervoso e até mesmo irado quando os outros conversam sem
esperar por sua palavra de esfinge, com a qual ele soluciona os sete enigmas do
universo”.
Em 2010, Grass publicou seu
último livro, “Grimms Wörter”, que reúne em um só volume uma biografia dos
irmãos Grimm e a continuação de seus próprios escritos autobiográficos. Falando
à revista Der Spiegel, ele relativizava a importância do Nobel: “Para mim, o
Prêmio do Grupo 47, em 1958, na verdade foi mais importante, porque na época eu
era pobre como um rato de igreja.” Desse prêmio, Grass tirou o melhor possível.
De romancista debutante, tornou-se um personagem do século.
Nenhum comentário:
Postar um comentário