domingo, 19 de julho de 2015

A soma dos meus personagens

3 de junho de 2015

[Excerto de Zum Tode Günter Grass: Abschied von einer Jahrhundertfigur (Sobre a morte de Günter Grass: Despedida de um personagem do século), de Sebastian Hammelehle (Spiegel Online, 13/04/2015). Tradução: Zé Pedro Antunes.]


Günter Grass (à esquerda, com Dieter Wellershoff) no encontro do Grupo 47 em 1964

O próprio Günter Grass, na verdade, não tratou de facilitar as coisas para si mesmo ao declarar, já em 1988: “Eu sou a soma dos meus personagens, inclusive dos homens da SS”.

Ninguém reconheceu, então, o peso dessa afirmação. Em entrevista televisiva a Ulrich Wickert, depois do lançamento de Beim Häuten der Zwiebel [Descascando a cebola], em 2006, o escritor falava sobre seus meses na SS-Panzer-Division “Frundsberg”: “Isso sempre me ocupou, esteve sempre presente, e eu era da opinião de que bastava ter feito o que fiz como escritor, como cidadão deste país, e que era o oposto do que me marcou na juventude durante o nazismo.”

Mesmo soando como se o escritor, no caso, se alçasse a juíz em causa própria, para então se desonerar com  uma absolvição – e mesmo que em absoluto não se pretenda compensar o período na Waffen-SS com os méritos ulteriores: impossível não reconhecer-lhe os maiores méritos pela abertura social da República Federal, a luta contra a política de colocar um ponto final no debate sobre o passado nazista (Schlussstrich-Politik) e a tendência a atenuar-lhe a gravidade (Vergangenheits-Beschönigung).

Grass – segundo ele próprio, inventor da fórmula “ousar mais democracia”, com a qual Willi Brandt deixou sua marca no século passado – se atirava com vontade em quase todas as confrontações – ainda que, ao criticar Israel com o poema Was gesagt werden muss [O deve ser dito], de 2012, tenha causado estranheza justamente nos correligionários de outrora.

Como escritor, de há muito ele se fizera uma instituição social, um personagem do século, como na literatura de língua alemã – tendo sido Thomas Mann o último da espécie – nem mesmo Brecht havia logrado. Mas nada lhe era mais estranho do que a postura aristocrática de Mann. Tinham algo de plebeu o tom áspero e a clareza verbal com que subia ao ringue.

Seu intelecto parecia aterrado. Radical de esquerda ele nunca foi, diferentemente de outros companheiros de geração como Martin Walser e Hans-Magnus Enzensberger, mas por muito tempo ocupou o lado esquerdo do espectro. A história da cultura de protesto na República Federal só pode ser reconstituída tendo-o como referência. Se antes ele se engajara contra as leis de exceção, o acordo bilateral da Otan ou o modo como se deu a reunificação, na velhice – ele que uma vez declarara aborrecê-lo o conceito de “literatura engajada”, um modismo dos anos 60 –, tomou posição contra o poderio dos bancos, pregou o abandono do capitalismo, subscreveu manifesto de oposição à deposição de lixo atômico em Gorleben.      

Nascido aos 16 de outubro de 1929 em Langfuhr, periferia de Danzig, hoje Gdansk, seu pai era comerciante de especiarias e a mãe, fato que Grass gostava exorcizar e mitificar, provinha da etnia eslava dos cassúbios. Cresceu numa casa de dois cômodos, com cozinha mínima e toilette no corredor. Quarto das crianças não havia: “Minha irmã e eu tínhamos, cada qual, um nicho sob os parapeitos das janelas da sala. Ali eu tinha meus livros e minhas coisas.”

Ainda que, depois de um período como aprendiz de cantaria entre 1948 e 1952, tenha estudado escultura e artes gráficas na Academia de Arte de Düsseldorf, Grass sempre se considerou um autodidata: “Fui um jovem inculto, ou apenas parcialmente culto. Aos 15, a escola acabou para mim e, quando pela primeira vez eu comecei a escrever a sério um manuscrito mais longo, eu sequer dominava a ortografia alemã.” O manuscrito de Die Blechtrommel [O Tambor] estava cheio de erros ortográficos.

O elã mordaz permaneceu com ele até o final. Um poeta alemão chamou-o certa vez de “Mister Testosterona”. Em suas memórias, o crítico Fritz J. Raddatz, seu amigo ao longo da vida, escreveu: “Ele sempre tem esse gesto centralizador, dominador, do ‘agora eu quero falar’; e fica nervoso e até mesmo irado quando os outros conversam sem esperar por sua palavra de esfinge, com a qual ele soluciona os sete enigmas do universo”.

Em 2010, Grass publicou seu último livro, “Grimms Wörter”, que reúne em um só volume uma biografia dos irmãos Grimm e a continuação de seus próprios escritos autobiográficos. Falando à revista Der Spiegel, ele relativizava a importância do Nobel: “Para mim, o Prêmio do Grupo 47, em 1958, na verdade foi mais importante, porque na época eu era pobre como um rato de igreja.” Desse prêmio, Grass tirou o melhor possível. De romancista debutante, tornou-se um personagem do século.


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