sexta-feira, 10 de julho de 2015

Nana

5 de abril de 2015
por José Pedro Antunes

Vi Nana Caymmi ao vivo algumas vezes no início dos anos oitenta. Num quase ostracismo, pérolas aos poucos, entre os quais eu me alinhava onde quer que ela se apresentasse. Ao retornar da Europa, em 1981, constatei que, lamentavelmente, algo que nos distinguia, uma música popular de espantosa qualidade musical e literária, entrara em declínio, começava a se parecer com o padrão que infestava o show-business internacional.

Como todas as divas, afirma Gilberto Gil, Nana sempre foi muito “seletiva”, gostava do que gostava, nunca precisou “cortejar” outros tipos de música. Fazendo parte da tribo dos baianos, a partir de “Saveiros”, vivendo com Gil, Nana diz não ter gastado nem dois minutos com a Tropicália, não entendeu, não via a graça naquilo.

Afora as imagens de sua aparição num Festival da Record cantando “Bom Dia”, parceiro Gil ao violão e arranjo de Rogério Duprat, eu só conhecia o registro de sua participação no DVD “Brasileirinho” de Maria Bethânia. Volto a vê-la agora no DVD “Rio Sonata” (Quitanda, 2013), documentário a ela dedicado pelo franco-suíço Georges Gachot (o mesmo de “Música é Perfume”, sobre Bethânia).



Eu nunca associara Nana tão fortemente ao Rio de Janeiro como nos mostra o cineasta. E o faz com com extrema sensibilidade, sem obviedades, escolhendo ângulos pouco explorados da cidade, privilegiando momentos de névoa, sombra, escuridão, o anoitecer, o trânsito, pessoas silenciosas na praia ante o pôr-de-sol, garotos jogando pelada, populares opinando sobre a cantora, vendedores de discos usados lembrando suas canções.

[“Nana dizendo, numa cena do filme de Gachot ‘Eu me adoro cantando!’... ela o faz em sintonia conosco, com os ouvintes imediatamente apaixonados pelo seu canto, em sincronia com o crescendo do nosso deslumbramento.” (Caetano Veloso, no encarte do DVD)]

Direta, engraçada, debochada e desbocada, Nana fala de tudo e de todos e de si mesma sem rodeios nem reverências. Tanto lamenta a velhice e seus achaques, ela que para levantar da cama diz estalar inteira, como deplora algumas escolhas do seu repertório. Diz que gravar é ótimo, mas depois não sabe o que fazer com certas canções, “Ponta de Areia” sendo uma delas. Sobre o sucesso nacional, tardio, dela e da canção “Resposta ao Tempo” (anos depois de gravada virou tema de “novela da Globo”): “Vá entender a cabeça desse povo”.  

Começou a cantar aos dois anos de idade. E foi “Waltz of the flowers” de Tchaikovski. “Um terapeuta, um analista teria dito essa menina é louca, tem que internar”. Mesmo adorando música popular, sua paixão sempre foi o canto clássico. Estudou piano com Dona Nise Obino, a mesma professora de Nelson Freire. Muitas vezes, ela e Dori de saída, chegava o “Nelsinho”. Tinham vontade de ficar escondidos ouvindo aquele espanto. Ela e Dori também eram bons, pondera, para a medida da idade, 11 e 13 anos. Mas Nelsinho era o gênio que continua até hoje encantando o mundo.

É com “Dorivalzinho” que ela diz ter melhor se havido ao longo da vida e da carreira. Para interpretar “Saveiros”, o letrista Nelson Motta queria Elis, mas Dori disse que essa era para Nana. Só lamenta ter posto numa tonalidade tão alta, podia ter baixado pelo menos um tom e meio, ficaria mais confortável. E talvez não tivesse tido o mesmo impacto.

Aos 70 anos, carreira sem concessões e uma vida rodeada de “tanta coisa bonita”, Nana diz que “Acalanto”, que o pai compôs para niná-la, já lhe teria bastado para viver. Ela que, quis o ouvido do pai, no colo já ditara o próprio nome: Nana. “Ni na na na / nananinaná”, nasciam os compassos iniciais de uma obra-prima. Com ela termina o documentário, com o estribilho que Dorival aprendera de sua mãe: “Boi, boi, boi / Boi da cara preta / Pega esta menina / Que tem medo de careta”.


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