18 de março de 2015
por José Pedro Antunes
por José Pedro Antunes
A melodia me soara um tanto
hesitante, a letra parecendo ter sofrido a ação corrosiva do tempo. Quem me
ensinou foi um colega de escola, que a ouvira de sua mãe, que costumava
cantá-la enquanto lavava a roupa. Eu, que desde cedo cultivara o hábito de
memorizar toda canção que me tocasse, logo tratei de incorporá-la ao meu
repertório.
Já a primeira estrofe, muito
antes de Luis Melodia e Carlinhos Brown terem nos habituado a não questionar
letras de música pelos parâmetros da lógica formal, parece anunciar uma toada
do caboclo doido e apaixonado: “Maria Júlia embarcou pra Seriema / Coitadinha
da morena / Quase morreu de chorar // Ai eu pedi / Que desse um voto pra ela /
Morena cor de canela / Peço um beijo, ela me dá”.
A estrofe seguinte me
aconselharia a tirar de uma vez o cavalo da chuva, deixar que a canção me
impusesse o sonoro desembestar de seus desregramentos: “É lua clara /
Quarteirão para minguante / Nossa Senhora do Monte / São Pedro, Menino Deus //
Cristo nasceu / Foi por obra do Divino / Sacristão bateu no sino / E a luz do
sol apareceu”.
Assim, tal como a percebi,
tratei de cantá-la adiante, fazendo o que sempre fiz com qualquer canção, mesmo
as de registro conhecido, nos estreitos limites dos meus conhecimentos
harmônicos e no deslimite da vontade de me ajeitar com o braço do violão e
ponto.
Um acerto, como constatei
adiante, foi tê-la acomodado ao ritmo do que eu achava que seria um baião. Pois
acabou sendo uma das canções mais bem recebidas pelas plateias que me
escutaram. E olha que não é fácil fazer com que um alemão, por exemplo, se
sinta impelido a arremedar com a pesada carcaça o que eu nem sabia direito como
arrancava do nada.
Mas cumpre, agora, dar um
salto de quase trinta anos no tempo. O google não me auxilia, mas sei que terá
sido numa das últimas vezes que Inezita Barroso esteve na cidade. Terminada a
apresentação, fui até a lateral do palco armado no Ginásio do Sesc e, assim que
me aproximei, vi que ela estava parada a um canto, alheia ao congraçamento.
Ao perceber o meu aceno, ela
prontamente veio na minha direção, com o sorriso escancarado que era sua marca
registrada. E de repente conversávamos já como velhos conhecidos. O que eu
queria era saber se ela, talvez, não conhecia aquela canção vinda de não sei
onde. Aos primeiros versos, para minha surpresa, a cantora se pôs em alvoroço,
chamando pelas Irmãs Galvão. Viesem só ouvir o que eu estava cantando. Retomei
do início, como ela me pedira. E no segundo verso estava formado um quarteto,
as três seguindo um pouco a reboque do que eu um dia imaginara pudessem ser
aquela letra esquisita e a melodia marcante. Só nos versos finais é que me
coube um solo, pois deles nenhuma delas mais se recordava: “São sete ano, sete
noite, sete dia / Sete ala de quadria / Sete padre no altar // Sete baiano /
Sete pandeiro rufando / Sete moça namorando / Numa noite de luar.” Na repetição
dos quatro últimos versos, elas retomaram o canto, e seguimos, juntos, comendo
todos os esses.
Em seguida, Inezita me contou
que gravara a canção em 1958. Que a seguira cantando por um tempo, mas depois,
por alguma razão, foi deixando de cantá-la. Se dizia imensamente feliz em saber
que aqueles versos ainda estavam por aí à solta, e agradecida por termos nos
encontrado em razão da tradição que ela sempre representara. Prometeu que
tentaria localizar o registro. Até anotou o meu endereço de e-mail, mas não
houve notícia. Terá sido um daqueles bolachões de 78 rotações por minuto, imagino,
uma música de cada lado.
Assim que devo me conformar
com o que eu mesmo intuíra de mais uma canção que peregrina no tempo, sem dono,
nem rumo certo. E pelo desassombro com que as três me seguiram, forçoso é
concluir que não devo ter passado tão ao arrepio do que fora a canção no tempo
em que surgiu e por Inezita foi registrada.