segunda-feira, 29 de junho de 2015

Uma canção peregrina

18 de março de 2015
por José Pedro Antunes

A melodia me soara um tanto hesitante, a letra parecendo ter sofrido a ação corrosiva do tempo. Quem me ensinou foi um colega de escola, que a ouvira de sua mãe, que costumava cantá-la enquanto lavava a roupa. Eu, que desde cedo cultivara o hábito de memorizar toda canção que me tocasse, logo tratei de incorporá-la ao meu repertório.

Já a primeira estrofe, muito antes de Luis Melodia e Carlinhos Brown terem nos habituado a não questionar letras de música pelos parâmetros da lógica formal, parece anunciar uma toada do caboclo doido e apaixonado: “Maria Júlia embarcou pra Seriema / Coitadinha da morena / Quase morreu de chorar // Ai eu pedi / Que desse um voto pra ela / Morena cor de canela / Peço um beijo, ela me dá”.

A estrofe seguinte me aconselharia a tirar de uma vez o cavalo da chuva, deixar que a canção me impusesse o sonoro desembestar de seus desregramentos: “É lua clara / Quarteirão para minguante / Nossa Senhora do Monte / São Pedro, Menino Deus // Cristo nasceu / Foi por obra do Divino / Sacristão bateu no sino / E a luz do sol apareceu”.

Assim, tal como a percebi, tratei de cantá-la adiante, fazendo o que sempre fiz com qualquer canção, mesmo as de registro conhecido, nos estreitos limites dos meus conhecimentos harmônicos e no deslimite da vontade de me ajeitar com o braço do violão e ponto.

Um acerto, como constatei adiante, foi tê-la acomodado ao ritmo do que eu achava que seria um baião. Pois acabou sendo uma das canções mais bem recebidas pelas plateias que me escutaram. E olha que não é fácil fazer com que um alemão, por exemplo, se sinta impelido a arremedar com a pesada carcaça o que eu nem sabia direito como arrancava do nada.

Mas cumpre, agora, dar um salto de quase trinta anos no tempo. O google não me auxilia, mas sei que terá sido numa das últimas vezes que Inezita Barroso esteve na cidade. Terminada a apresentação, fui até a lateral do palco armado no Ginásio do Sesc e, assim que me aproximei, vi que ela estava parada a um canto, alheia ao congraçamento.

Ao perceber o meu aceno, ela prontamente veio na minha direção, com o sorriso escancarado que era sua marca registrada. E de repente conversávamos já como velhos conhecidos. O que eu queria era saber se ela, talvez, não conhecia aquela canção vinda de não sei onde. Aos primeiros versos, para minha surpresa, a cantora se pôs em alvoroço, chamando pelas Irmãs Galvão. Viesem só ouvir o que eu estava cantando. Retomei do início, como ela me pedira. E no segundo verso estava formado um quarteto, as três seguindo um pouco a reboque do que eu um dia imaginara pudessem ser aquela letra esquisita e a melodia marcante. Só nos versos finais é que me coube um solo, pois deles nenhuma delas mais se recordava: “São sete ano, sete noite, sete dia / Sete ala de quadria / Sete padre no altar // Sete baiano / Sete pandeiro rufando / Sete moça namorando / Numa noite de luar.” Na repetição dos quatro últimos versos, elas retomaram o canto, e seguimos, juntos, comendo todos os esses.

Em seguida, Inezita me contou que gravara a canção em 1958. Que a seguira cantando por um tempo, mas depois, por alguma razão, foi deixando de cantá-la. Se dizia imensamente feliz em saber que aqueles versos ainda estavam por aí à solta, e agradecida por termos nos encontrado em razão da tradição que ela sempre representara. Prometeu que tentaria localizar o registro. Até anotou o meu endereço de e-mail, mas não houve notícia. Terá sido um daqueles bolachões de 78 rotações por minuto, imagino, uma música de cada lado.

Assim que devo me conformar com o que eu mesmo intuíra de mais uma canção que peregrina no tempo, sem dono, nem rumo certo. E pelo desassombro com que as três me seguiram, forçoso é concluir que não devo ter passado tão ao arrepio do que fora a canção no tempo em que surgiu e por Inezita foi registrada.



domingo, 28 de junho de 2015

Romance familiar – poesia familiar

24 de fevereiro de 2015

Em busca de imagens para uma apresentação, dou com a foto, feita em estúdio, de um garoto de 11 anos de idade chamado Walter Benjamin (1892-1940). Serve de ilustração a um ensaio que tangencia a relação do filósofo com a fotografia (“Pequena História da Fotografia”), a infância (“Infância Berlinense por volta de 1900”) e a infância fotografada (“Franz Kafka – A propósito do décimo aniversário de sua morte”).

Por Gunnar Schmidt*. Tradução: Zé Pedro Antunes.

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Fotografar é com os pais: amor à técnica, olhares sem palavras, gestão. É da moldura que os pais olham para a cena. Já as mães são guardiãs do significado: ordenação das imagens, encadernação, legendas. Mães são arquivistas, atribuidoras de sentido. E a criança? Se lhe faz recordação. A criança cresce, sobre ela se contarão histórias.

À visão das fotos, situações são evocadas, associações são tecidas: “Olha, é você quando não sabia ainda quem você era!” Ao contemplar o seu álbum, não imita a criança o olhar do pai e a linguagem da mãe? Não confere como o pai viu a criança? E não entende as frases como as prescreveu sua mãe?

O que era uma vez não lhe retorna como seu, é o olhar, o sentir e o falar dos outros – dominadores dos aparelhos, poderosos da cultura, criadores de mitos. A partir de momentos da história, eles idealizam histórias, motivos, convicções. Selecionam, desejam, esquecem – são os artífices da vida da criança. E a criança ouve, vê, assimila palavras e imagens, para logo em seguida repeti-las, revivê-las. Sua história, ela a recebeu sem que a tivesse vivido. É assim que o Eu se constrói.

Nasce uma criança. É enfermiça, inapetente. Os pais se preocupam, procuram médicos. Esforçam-se, ficam aflitos. Mas a criança cresce e fica saudável. Aquele tempo ficará na recordação como o tempo em que a criança se chamava criança triste. Uma criança tem que ser alegre. A infância, se diz, é o tempo mais feliz na vida de um ser humano. Essa é a afirmação romântica de nossa cultura. Por isso, ele jamais gostou de contemplar suas fotografias de criança, justamente por ter sido uma criança triste. Falsas imagens de uma infância ou imagens de uma infância falsa?




Também, mais tarde, ele acharia especialmente logrados e verdadeiros os instantâneos que mostravam a criança com uma expressão séria no rosto: símbolo de tristeza sublimada. Como se sabe, para ele (sem que o suspeitasse) uma foto lograda era aquela que tornasse a recuperar a melancolia da infância (da criança, dos pais?). Ele, o corpo, aceitou a história, encenou diante da câmera um passado que lhe viera em narrativas; criou uma imagem corporal que repetia o mito da criança triste. (Um acontecimento precoce: Aos 11 anos, a criança posa no estúdio de um fotógrafo, que, em vão, tenta fazê-la sorrir.)

Salto no tempo. Todas as imagens da infância foram esquecidas, abandonadas num livro, enterradas na gaveta de um armário grande. O álbum surrado não mais lhe caíra nas mãos. Só depois de anos e anos é que imagens isoladas lhe vêm à mente, e de novo lhe ocorrem as alegorias da melancolia. Não o acontecimento, o momento histórico, o contexto do qual brotou a imagem, não a foto como suporte a evocar uma vivência passada. A imagem é mônada, na qual um imaginário se plastifica, uma fixação. A imagem rememorada não representa um passado (do qual ele já não sabe mais nada). De narrável, ela nada mais contém, é espelho de uma situação – tempo suprimido.

Com essa fotografia imaginada em mente, ele procura pelo álbum de criança, para, finalmente, se deparar com esta ou aquela imagem. Não o traíra a recordação, a criança séria existiu, as provas ali estavam. E no entanto, ao folhear o álbum, constata que em muitas delas a criança lança ao mundo um olhar de contentamento pleno. Fissura na percepção: Antes só conseguia ver a criança ‘malograda’, agora vê a criança normal, uma criança que ri, que está ocupada, a postos para os fotógrafos.

Mas o que foi esse mito da criança séria-melancólica? Uma ilusão, uma construção preservada, um recorte que se tornara universal? Dele se apodera a suspeita de que o álbum representa uma conjura, com a qual se pretendia banir a triste experiência com uma criança preocupada e preocupante. A convenção da imagem faz do cotidiano uma coleção de momentos felizes: Natal, brinquedos, aniversário, presentes.
Questão da verdade: Qual recordação está mentindo?

Ele consegue discernir um critério, distinguindo no álbum duas espécies de imagens: fotografias de recordação e fotografias do Eu (suas imagens recordadas). Imagens da recordação o conduzem de volta a uma cena, a acontecimentos. Ao contemplá-las, surgem relatos, comentários, narrativas; dramas, enredos são evocados. Fotos do Eu mostram autoimagens. Como os stils de um filme cujo contexto se perdeu. Nelas, ele é Eu fixado, figura, personagem. Nem ator nem história. Imagens cujo sentido veio de fora, de contextos alheios à cena fotográfica. A foto do Eu é metáfora, alegoria, arquétipo individual – não é narrável. Nelas não se dá a ver senão uma identidade estilizada, um clichê: a criança triste.

Os dois tipos de imagem possuem memórias com estruturas e conteúdos diferentes. A foto de recordação subjaz à estratégia da construção: a ela se incorpora o relato do passado com suas figuras de estilo (p. ex. sentimentalização, heroicização, humor), ofuscamentos, excessos, marginalizações. É romance.

A foto do Eu, ao contrário, aporta para a zona de pressentimento coisas inconscientes. Ela contém atribuições amarradas, condensadas, não descarregadas, que nela se sedimentaram. Nela ele se vê como alguém que quase se tornou, mas que de tornar-se se viu alijado. É poesia. Ou sintoma, reflexo narcísico. Parece conter uma garantia, a qual – paradoxalmente – carece de fundamento. “Sou eu, é verdade”, diz o observador, mas sem saber de onde está a extrair essa certeza. Lúdica se apresenta, ao contrário, a imagem da recordação, a oferecer um papel num episódio; ela demanda tempo, início e fim. Em sua interpretação se qualificam os eventos descortinados: algo era belo, impressionante, perigoso, excitante etc. A autoimagem narcísica desconhece tal qualificação. O corpo, a expressão, a postura – tudo é símbolo de uma existência sem antes nem depois, sem mutabilidade.

Não sabemos dizer se nós é que fazemos as imagens ou se as imagens é que nos fazem. A memória das imagens (olhar paterno?) e a memória do Eu (língua materna?) – elas se confundem, se mesclam, mudam de posição. E de um lugar qualquer provém um discurso, que em nós ressoa, e ao qual queremos dar crença. Poder unificador: esse discurso quer significar para nós o que desde sempre fomos. Mas tornamos a contemplar a coleção de imagens e não vemos esse um. Duvidar da crença, é isso que nos ocorre, pois vemos: imagem após imagem após imagem... o Eu multiplicado, estranho.

A fotografia se torna crítica quando, na série da figura que se transforma, a visão da antiga autoimagem se torna alheia: Isso fui eu, isso fui eu, isso fui eu – mas eu não me recordo. E assim começamos uma vez mais a nos perguntar pelo que somos. A meditação sobre a própria imagem na fotografia é perda e reflexão da identidade.

(*) Gunnar Schmidt estudou Anglística, Politologia e Pedagogia. Diplomado pela Universidade de Hamburgo, trabalha na confluência de três grandes áreas: Comunicação, Cultura e Literatura. Desde 2009 é docente na Escola Superior de Trier, atuando na área de Intermidia Design (Teoria e Praxis da Intermediação). 



sexta-feira, 26 de junho de 2015

As letras sem o letramento

10 de fevereiro de 2015
por José Pedro Antunes

Em entrevista recente, Jean-Claude Carrière declara ter crescido numa casa que não tinha livros. Em “Não contem com o fim do livro”, o leitor pode acompanhar um saboroso diálogo entre o escritor e roteirista francês e Umberto Eco, ambos bibliófilos. Mui a miúdo eles se referem ao nosso José Mindlin, que com absoluta certeza tampouco teria podido viver senão rodeado de livros.

Também me lembro de ter ouvido a poeta Alice Ruiz contar do acontecimento que foi ter sido presenteada na escola com um livro, ela que crescera numa casa onde só havia um exemplar da Bíblia. Também o poeta Ferreira Gullar relatava dia desses o início de sua aventura, praticamente a partir do nada, os primeiros anos vividos num meio pouco afeito à leitura.

O mesmo, como se sabe, não se deu com Chico Buarque, e nem com o narrador-personagem de “O Irmão Alemão”, tendo vivido, ambos, numa casa cujas paredes lhes pareciam feitas de livros. Já um meu conterrâneo, o poeta Ulisses Tavares, no que deveria ter sido um stand-up com poemas satíricos, em Ribeirão Preto, houve por bem se alongar em considerações sobre o desaparecimento, em escala global, dos leitores.

Entre outras coisas, ele discordava das ações governamentais que consistem em distribuir livros, inclusive os dele próprio, a pessoas que não sabem ler, não estão sendo letradas. Penso numa aluna que orientei em projeto de iniciação científica. No primeiro passo, já ela se deparara com uma dificuldade incontornável. Ainda que se esforçasse para ler “O Processo”, de Kafka, ela desabafava: “eu me canso muito rápido”.

Pensei que ela talvez devesse consultar um oftalmologista, com o que estaríamos salvos, todos. Quando teremos peito para assumir que a progressão continuada já projeta sua ausência de luzes sobre a universidade? Pode-se dizer que passa a comprometer mesmo os resultados dos programas de pós-graduação, como é fácil constatar à leitura de algumas dissertações e teses ultimamente produzidas.

Ao mencionar os luminares da literatura que cresceram em casas sem livros, e que se fizeram leitores e autores, caberia alimentar a esperança de que, da massa atual dos brasileiros que frequentam de ponta a ponta o nosso sistema de ensino, possa ainda surgir, e apenas milagrosamente, um que outro novo exemplar da espécie. O que, no entanto, estaria longe de solucionar o problema abordado pelo poeta sorocabano, que concluía seu raciocínio com a conclusão de que a escola tem que voltar a promover o “letramento”.

Para que serve hoje a escola no Brasil?, ele se perguntava. É o lugar onde as pessoas vão comer. Onde eventualmente se fazem festas, quermesses, aonde se vai dar umas voltas, espécie de clube popular. Poucos dias depois, tive que ir ao campus e dei com o restaurante em reforma, prevista para ser concluída no prazo de um ano. De par com a expulsão de 17 alunos, o não funcionamento do restaurante faz prever um conturbado início de ano letivo. Mas, para além das implicações materiais, no caso do restaurante, é no plano simbólico que residem, a meu ver, ameaças ainda mais perturbadoras. Tendo em conta a fala do poeta, é como se o campus subitamente tivesse perdido a razão de existir.

Detenho-me na palavra “letramento”, pensando que poucos dentre os meus alunos demonstram ter clareza sobre o que é, afinal, um curso de letras. Deixou de ser óbvio e consensual que a atividade da leitura seja a razão de ser da nossa lida. Vale também para as instâncias que nos avaliam. Não sei quantos de meus pares ainda podem se entregar ao ócio indispensável ao cultivo das coisas do espírito. Se estarrece constatar que, numa classe de trinta alunos, dois apenas chegam à universidade dotados do hábito da leitura, mais estarrecedor é saber que podem vir a perdê-lo em muito pouco tempo, pois, ai de todos nós, vivemos numa casa cheia de livros, mas com cada vez menos chances de manter ou desenvolver o amor pelo convívio com eles.



quinta-feira, 25 de junho de 2015

Era uma vez um grande desenhista

20 de janeiro de 2015
por José Pedro Antunes

Sei de pessoas que acham difícil, senão impossível, encontrar o riso em Kafka. Outras discordam mesmo terminantemente de uma leitura pelo viés do humor. Humor que, segundo Polanski, para poloneses e tchecos é o modo natural de se ler Kafka. Humor do qual os dirigentes comunistas muito certamente se davam conta, mas as obras de Kafka não correspondiam às exigências do realismo socialista.

Mas não pense o leitor que eu mesmo não tenha momentos de hesitação diante dos achados que tenho feito e veiculado em nome da possibilidade de uma leitura que leve em conta o riso em Kafka. Cada novo livro a respeito acabará por nos obrigar a rever tudo o que já tínhamos como sabido ou pensado. Eu mesmo me vejo em meio à leitura de um cerrado ensaio filosófico. Em “K.”, esse o título da obra, o italiano Roberto Calasso lê “O Processo” e “O Castelo” como sendo “quase” o mesmo romance.

Não que ele não leve em conta o cômico, aqui e ali evidente nas obras em apreço e nas demais narrativas de Kafka. Ele o faz sem descurar de todos os outros aspectos, de modo a promover a convivência das mais variadas vertentes interpretativas. E essa seria uma resposta a quem possa ter discordado do que eu dizia e das vozes que eu citava no artigo de quarta passada. Não se trata de estabelecer uma nova interpretação acima de todas as outras, mas de afirmá-la igualmente possível, defendê-la para que não pereça em detrimento das demais.

Thomas Mann, por exemplo, precisou de vários adjetivos, chegando mesmo a acoplar dois deles, ‘cômico-onírico’, para qualificar um ‘entretenimento’ literário. Foi no Frankfurter Zeitung, aos 19 de junho de 1927, portanto, no calor do lançamento póstumo promovido por Max Brod: “De pronto me ocorrem algumas coisas, dos últimos anos, que em mim produziram um efeito bastante agradável: os livros de Franz Kafka, por exemplo, imagens visceralmente peculiares, de um cuidado sublime, das narrativas breves ao fôlego das fantasias de ‘O Processo’ e ‘O Castelo’ – atemorizante, cômico-onírico, de uma fidelidade magistral e doentio, o entretenimento mais estranhamente instigante que se pode imaginar.”

Nos anos 1990, um outro escritor alemão, Herbert Achterbusch, faz a sua tentativa: “Em Kafka eu encontro aquela excitabilidade dominical de antes do almoço. Não, simplesmente isso, ele está sempre bem-humorado ao escrever.” Seu pressuposto: a necessária dissociação de obra e biografia do autor, que, em se tratando de Kafka, concordo, sempre exigirá um esforço suplementar. Por exemplo, à leitura da seguinte afirmação biográfica: “Nas últimas semanas antes de sua morte, Kafka muitas vezes não consegue ingerir alimentos e nem falar. Comunica-se escrevendo em páginas de caderno, lê as notas da revisão para sua derradeira publicação (“Um artista da fome”) e observa o progresso da enfermidade.”

Ou tomemos um desses aforismos que circulam pela internet: “O verdadeiro caminho passa por uma corda, que está esticada não no alto, mas logo acima do chão. Parece destinada mais a fazer tropeçar do que a ser palmilhada.” É claro, ninguém vai reagir com uma gargalhada. Mas seria possível lê-lo como a escrita imagética, ideogramática, de alguém que por pouco não abandona a literatura para se dedicar inteiramente ao desenho.


É do próprio Kafka, em carta a Felice Bauer, a afirmação que pode nos levar adiante neste debate: “Que tal o meu desenho? Sabe, eu fui uma vez um grande desenhista, só que comecei a aprender a desenhar, escolarmente, com uma pintora ruim, e meu talento inteiro ficou arruinado. Pensa bem! Mas espera, vou te enviar a seguir alguns desenhos antigos, para que tenha algo com que possa dar risada. Esses desenhos, a seu tempo, já lá se vão anos, me satisfizeram mais do que qualquer outra coisa.”


terça-feira, 23 de junho de 2015

Entre eles, Kafka!

13 de janeiro de 2015
por José Pedro Antunes


Depois dos incontáveis perigos a que se viu exposta sua obra, em décadas de masturbações teológicas, biográficas, psicológicas, filosóficas, sociológicas ou psicanalíticas, Kafka encontra seu lugar nas estantes de auto-ajuda. Depois de “Nietzsche para estressados”, Allan Percy decidiu aviar “99 pílulas de sabedoria para lidar com a loucura do dia a dia”. Isso, com rima e tudo. Título da obra: “Kafka para sobrecarregados”. No conta-gotas, cada frase, sempre proverbial, vem acompanhada de inspirados sermões curativos, da lavra de quem, com eles, mais se vê ajudado.

Em artigo que circulava na internet em outros tempos, uma estudiosa intuía o potencial do seu objeto de investigação: “Kafka e o absurdo”. Suponho que no sentido de mitigar os deletérios efeitos produzidos pelo sertanejo e pelo forró, ambos universitários, na estudantada de hoje. Cito: “O estudante caminha pelo campus, às voltas com a falta de sentido da realidade. Com sorte, descobre os livros. Entre eles, Kafka!” Numa coisa ela acaba acertando, digamos, na barata. Só mesmo com muita sorte é que pode rolar um livro nessa parada duríssima.

Mas esse tipo de leitura pode não ser lá muito bom para a saúde psíquica. Certa vez, fui falar sobre o humor de Kafka numa faculdade. Anfiteatro lotado, e às escuras, pois dialogaríamos em torno de slides e cenas de filmes projetados no telão, pedi que microfones sem fio ficassem à disposição dos presentes. E o bicho pegou brabo. Quase nem precisei, eu mesmo, abrir o bico.

De repente, um aluno resolveu abrir as entranhas maltratadas por leituras e pela vida. Vai ver, achou que estava num templo dando testemunho. Descabelava-se, gritava a plenos pulmões. Foi quando tive que intervir. Enquanto ele estava para cortar os pulsos no quarto da república, ponderei, na casa ao lado a vizinha estaria saltitante com a geladeira nova que ganhara do marido, a mocinha da esquina estaria no bem-bom com o namoradinho novo, e muitos outros exemplos construtivos. E não é que funcionou? Conteve-se o surtado, serenaram-se os ânimos, seguiríamos em frente, intimoratos. Não que eu não tenha pensado em mudar de rumo. E principalmente de ramo. Ganhar muito mais do que ralando como um tonto para ter o que incluir no Lattes e com que pontuar na planilha.

Mas o que me levou ao humor de Kafka foram declarações do cineasta Roman Polanski em idos tempos. Na adaptação famosa de Steven Berkoff, que teve como protagonistas Tim Roth – na estréia em Londres, em 1969 – e, depois, Mikhail Baryshnikov, coube ao cineasta e ator polonês despertar, na montagem parisiense, de sonhos intranqüilos, transformado num inseto monstruoso. Fique o leitor com a tradução que fiz de passagens da entrevista conduzida pelo compositor francês Michaël Levinas.

Sabe que Kafka proibia que se representasse Gregor [...]. Trata-se de uma transformação animal ou de algo de monstruoso?

Quero te dizer como Kafka é visto na Polônia, ao contrário do que, com espanto, vim a descobrir aqui na França. Lá a gente vê muito humor nos textos de Kafka; no país de origem de Kafka é a mesma coisa. Aqui, Kafka é considerado como um autor lúgubre, dramático, sombrio, trágico. A dimensão surrealista de Kafka, que na Polônia é interpretada pelo viés do humor, aqui é tomada com extrema seriedade.

Viveu esse papel como um papel paradoxal?

Não como um papel cômico, mas vejo nele o humor, uma espécie de ironia que, de resto, está presente em toda a obra de Kafka. Este lado irônico é percebido como dramático.

[...] Sabia que Kafka ria ao ler, ele próprio, “A Metamorfose”? Se esborrachando de rir?

Veja só, eu não sabia! Pois é assim que víamos Kafka. É assim que parece natural ler Kafka. Como eu dizia, aqui fiquei espantado que se falasse de Kafka como um autor extremamente sombrio, dramático e deprimente. Não é nada disso, de jeito nenhum!


ilustrações: desenhos de Kafka




sábado, 20 de junho de 2015

“Não se pode conceber mais nenhuma ideia clara”

11 de novembro de 2014

[Christiane Hoffmann (FAZ) entrevista o filósofo Christoph Türcke, autor de “Hyperaktiv! Kritik der Aufmerksamkeitsdefizit Kultur” [Hiperativos! Crítica da Cultura do Déficit de Atenção], pela C. H. Beck Verlag, 2012. Tradução: Zé Pedro Antunes.]

E por que cultura?

Vivemos numa cultura de estimulação microeletrônica, que nos expõe a um constante bombardeio de impressões. Nesse sentido, a penetração das telas no mundo do trabalho foi mais um grande salto adiante.

Nossa sociedade inteira sofre do déficit de atenção?

Não se trata de uma doença num ambiente saudável. A sociedade inteira sofre de crescente incapacidade de atenção. Nas crianças, ela se manifesta com força máxima. Falo de uma perturbação cultural. Sofremos de “dispersão concentrada”. Conceito paradoxal. Constantemente nos empenhamos em nos dispersar. O que, longe de levar à distensão, produz estresse.

E perde-se a capacidade da atenção?

Os meios eletrônicos produzem efeito quase sempre abrupto sobre os sentidos. Cada imagem é um pequeno choque, um pequeno desvio. A atenção é estimulada, o que é positivo, sendo uma importante técnica cultural do cinema. Mas, incessantemente interrompida, redunda em seu contrário. Com sempre novos estímulos, perde-se a capacidade de permanecer em algo.

Mas o ser humano é hoje muito mais capaz de atenção do que antes. Penso num conceito: multitarefa.

A atenção é uma capacidade historicamente crescente. Ela é maleável. Hoje podemos nos entreter enquanto dirigimos um carro. Mas a maleabilidade tem limites. A ideologia do multitarefa parte de falsas premissas. Acreditar possível fazer cinco coisas ao mesmo tempo com a mesma atenção é um equívoco.

Não deveriam então os adultos e não as crianças sofrer de TDAH [Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade]?

As crianças têm a vivência de como os adultos se habituaram a interrupções constantes. Enquanto brincam com os filhos, a tevê ligada, eles checam e-mails e fotos. Crianças aprendem a atenção mais ou menos aos nove meses. É quando começam a se ligar, admiradas, no que os adultos lhes apontam. Processo imprescindível para o seu desenvolvimento. Quando incessantemente perturbado, as consequências são dramáticas. É imperceptível quando a criança é ainda muito pequena. [...] A carência de atenção pode ter uma invisibilidade diabólica, mas a longo prazo produz efeitos contundentes. O único calmante para essas crianças – afora o metilfenidato [ritalina] – é a tela.

Você vê o TDAH como fenômeno cultural. Mas os diagnósticos não costumam apontar uma perturbação neuronal?

Em geral, longe de ser um defeito físico, é consequência da enorme capacidade de adequação do nosso cérebro. Adequar-se a sempre novos estímulos, nisso consiste sua inteligência e criatividade. Na elaboração desses estímulos, ela configura vias e padrões neuronais. E padrões que se preservam são consolidados. Padrões estáveis são imprescindíveis para a estabilidade mental. Mas quando uma avalanche de estímulos obriga a construir sem parar algo de novo, a construção resulta em desconstrutividade. Pensemos num canteiro de obras: Se cada parede for interrompida para dar lugar à construção de outra parede, não vai surgir nunca um edifício.

Pode ser que também a demência senil tenha a ver com a constante “dispersão concentrada” produzida pelo excesso de televisão?

Ainda não me dediquei ao tema, mas algumas coisas sugerem que sim.

Por outro lado: O que é, pois, tão ruim na “dispersão concentrada”? A humanidade tem, afinal, tanta criatividade e capacidade performática como nunca em sua história.

É a ideologia do progresso. Uma quantidade crescente de estudantes não consegue mais seguir uma hora e meia de atividades pedagógicas, mesmo uma apresentação em Power Point com muitas imagens. O Power Point, como estimulante didático, leva afinal à perda da capacidade de pensar sem o constante acompanhamento de imagens.

Talvez as aulas de hora e meia simplesmente se encaixem numa forma tradicional de cultura. Mas o progresso, hoje, exige aptidão para mudanças velozes e constantes. Por que o pessimismo cultural?

Sem a capacidade de permanecer num assunto, não se pode conceber mais nenhuma ideia clara. [...] Mesmo a imaginação, a capacidade de criar imagens interiores, desaparece, porque sofremos incessante bombardeio de imagens exteriores e isso afeta a capacidade da experiência durável. Nenhuma razão para pessimismo cultural, mas tampouco cumpre lamentar um processo inalterável. Nós também desenvolvemos estratégias contrárias.

Quais?

Criação de espaços de blindagem, não exposição permanente aos meios de comunicação. Eu, por exemplo, não tenho tevê.

Estratégias individuais, portanto?

Também podem ser coletivas. Com os meus alunos, eu promovo jornadas em locais onde não há sinais de internet, onde, enclausurados, tratamos apenas dos nossos assuntos.

Para a sociedade hiperativa você prescreve rituais. Por que eles são importantes?

O homem é um animal de repetição. Homem ele se tornou por meio de rituais de sacrifício, com os quais emulava os horrores da natureza, para poder dominá-los. Rituais têm efeitos tranquilizantes. Sem a constante repetição não se assimila nada. Claro, também é possível fixar coisas erradas, mas sem a repetição não se fixa absolutamente nada.

Os computadores são realmente culpados pela hiperatividade? Ao desprezar os rituais, negar a memorização e demolir as regras de aprendizagem, a geração de 68 não contribuiu para esse estado de coisas?

Primeiro: Máquinas nunca são “culpadas”, somente, e sempre, quem lida com elas. Portanto: Sim, minha geração subestimou a importância dos rituais e das repetições, quando não os baniu inteiramente. Sobretudo no mofo do pós-guerra, com tanto vazio ritual. De tanto ter que decorar, passamos a classificar a memorização como irrefletida.

Você sugere a introdução de uma ‘Disciplina dos Rituais’. O que vem a ser isso?

Um eixo tranquilizante, que deve perpassar o cotidiano escolar em todos os níveis e tipos de escola. No curso básico, breves apresentações regulares em todas as disciplinas e a serem elaboradas pelos alunos, o que requer repetição e memorização, cujo efeito é tranquilizante e estabilizador.

E depois?

Sobre essa base, seria preciso introduzir uma disciplina autônoma: a ‘Disciplina dos Rituais’, unindo religião e sociologia, com a mesma duração de todas as outras disciplinas. Estruturas sociais não passam de rituais sedimentados. Trata-se de fazer com que o conjunto da sociedade tome consciência do alcance dos rituais. Não no sentido confessional, mas com bastante ênfase no significado da religião. Assim, teríamos um fórum para os conflitos provenientes da mistura multicultural nas escolas, abrangendo todas as culturas e subculturas que hoje nelas convivem. Cada qual aprender a professar o que lhe é importante e sagrado, sem ferir os demais, é algo que poderia ser elaborado na referida disciplina. Teria, pois, tanto individual como socialmente, um caráter tranquilizador.

Mas a hiperatividade não começa muito antes, na família?

Tem razão. Há que investir também nas famílias. Mas o  início da vida escolar é o primeiro momento em que temos a oportunidade de um programa abrangente.

Eu admito: ao longo desta nossa conversa telefônica, várias vezes me peguei a conferir e-mails ou a espiar se não recebera um SMS. Como se manifesta na tua vida a cultura do TDAH?


Sobretudo com a imposição de ter de conferir os e-mails. No mais, repito, não tenho aparelho de tevê.


sexta-feira, 19 de junho de 2015

Soylent: para nunca mais pensar em comida

21 de outubro de 2014




[Thorsten Schröder, Die Zeit Online 20/10/2014. Tradução/adaptação.: ZPA.]

Sem pretender nada com comida, Rob Rhinehart (25) trabalhava com dois parceiros num outro projeto, cujo capital inicial, de U$170.000, ia se esgotando sem que conseguissem divisar os resultados. Restavam ainda U$70.000 quando decidiram tentar, até onde o dinheiro alcançasse, com outras ideias de software. [...]

“Comer era um grande ônus”, postou Rhinehart num blog. Precisar de comida lhe dava nos nervos. O tempo gasto com comprar e preparar alimentos, ele queria usá-lo com mais inteligência. Começou a se informar pelo site oficial do Ministério da Saúde dos EUA, adquiriu pela internet pílulas e pós com os nutrientes necessários e bateu-os com água num liquidificador. O resultado passou a ser chamado de Soylent, em referência a “Soylent Green”, um clássico de ficção científica, no qual o governo mantém a população à base de pílulas. Há ano e meio, Rhinehart se alimenta dessa beberagem – e há tempos deixou de ser o único a fazê-lo.

Divulgada a experiência, centenas de comentários perguntavam pela receita e ofereciam sugestões. Estimulados, ele e seus parceiros passaram a se concentrar única e exclusivamente no aprimoramento da produção de Soylent. Em duas horas de campanha na net, conseguiram os U$100.000 necessários. Nesse meio tempo, Rhinehart remeteu as primeiras encomendas a mais de 25 mil incentivadores nos EUA. [...]

Na verdade, o mercado há anos está cheio de drinks para substituir as refeições. Mas, diferentemente de outros produtos, Soylent não se dirige a cultores do corpo ou adeptos de dietas, tendo por alvo a geração dos hackers, que acham um fardo pensar no almoço de cada dia. […]

A ração diária vem numa simples embalagem branca, acompanhada por um vidrinho de óleo – design que muito bem se adequa à chamada geração-Apple. Misturado com água, Soylent provê o corpo com 2 mil calorias – nem corpo pesado nem sensação de fome, promete Rhinehart, e isso por apenas U$10 ao dia. Tendo atraído o apoio de celebridades, novas encomendas diárias vão atingindo a marca dos U$10.000, fazendo com que a firma já se apresente como lucrativa. Programadores de San Francisco divulgaram um página de receitas, na qual cada usuário pode compor sua própria fórmula, perfeitamente ajustada ao respectivo peso e ao respectivamente necessário consumo de calorias. 

Experts, no entanto, ainda se mantêm céticos. “Existe o risco da subnutrição, se a pessoa se alimenta por longo tempo exclusivamente de Soylent”, esclarece Monika Reinagel. Rob Rhinehart é engenheiro, e não cientista da alimentação, e muita coisa pode ter lhe escapado. “É claro que Soylent, em comparação com a alimentação de muitos americanos, representa um upgrade”, diz a pesquisadora. Mas a firma não dialoga diretamente com essas pessoas.

Mesmo assim, Rhinehart se tornou um darling do ‘food-hacking’. Também Josh Tetrick (33) se conta entre os techies, pessoas cujo único objetivo é otimizar a nossa comida. Ele pretende substituir a totalidade da produção de ovos nos EUA por similares que até têm sabor e se comportam como ovos autênticos, mas não são ovos. Sua firma vem elaborando um produto, é claro que tudo em segredo e patenteado, que vai poder ser confundido com o original.


Mas em primeiro lugar vem o conforto. Soylent, de acordo com o material de divulgação, deve substituir as refeições, que só servem para encher o estômago. Um vídeo lança a pergunta: “Como seria se você nunca mais precisasse pensar em comida? No lugar de um lanche rápido ou de uma pizza congelada, por que não Soylent? E em vez de uma longa e nada saudável pausa para o almoço, os programadores no Vale do Silício, graças a Rhinehart, têm o direito de seguir trabalhando. Enquanto isso, a fórmula foi levemente melhorada, com a bebida ficando menos doce e passando a conter enzimas para facilitar a digestão. Soylent 1.1 é seu novo nome de batismo. 


quarta-feira, 17 de junho de 2015

Outros Sertões - 2

7 de outubro de 2014
por José Pedro Antunes

Se quiser saber sobre a literatura austríaca, no que se apresenta na rede ou nas histórias da literatura alemã, o leitor poderá se sentir um tanto confuso. Nestas, a literatura austríaca, bem como a da Suíça alemã e, por algumas décadas de Guerra Fria, a da Alemanha Oriental invariavelmente se constituem em apêndices muito breves. Na rede, em textos mais recentes, descobrirá que a hesitação entre “literatura austríaca” e “literatura da Áustria” se impõe como reveladora de um impasse. Desde que Goethe cunhou o conceito de “Literatura Universal” (Weltliteratur), falar em literaturas nacionais se tornou problemático. Um dos motivos para que Guimarães Rosa apostasse tanto na tradução de sua obra para o alemão tinha a ver com o desejo de torná-la universal. Vale dizer que sua obra cumpre, à perfeição, o dito de que quanto mais regional, mais universal será uma literatura.

Em Curitiba, pude presenciar a leitura dramática, nos respectivos idiomas, de textos de brasileiros e alemães, para uma plateia que, obviamente, se supunha bilíngue. Dentre os brasileiros, Rosa era mesmo incontornável. Mas João Silverio Trevisan e Michel Laub, com algumas obras já traduzidas para o alemão, certamente se incluíam como aspirantes à universalidade.

Quando, a pedido da editora Cosac Naify, andei à procura de uma foto de Peter Bürger, a ser incluída na edição de Teoria da Vanguarda”, foi com surpresa que encontrei, em meio à extensa lista de celebridades literárias universais, um único brasileiro: Milton Hatoum. Ele que, por acaso, não constava do rol dos autores lidos no evento em Curitiba.

Mas vejamos a informação de um site oficial sobre a Áustria: “Apesar de sua fama como terra de artistas e cientistas, a Áustria sempre foi também uma terra de poetas, escritores e romancistas. É o local de nascimento dos romancistas Arthur Schnitzler, Stefan Zweig, Bertha von Suttner (primeiro Nobel da Paz), Marie Ebner von Eschenbach, Oswald von Wolkenstein, Elfriede Jelinek (Prêmio Nobel de Literatura, 2004), Thomas Bernhard, Franz Kafka, Robert Musil e dos poetas Georg Trakl, Franz Werfel, Franz Grillparzer, Rainer Maria Rilke, Adalbert Stifter e Karl Kraus. Uma menção à parte é dada a Hugo von Hoffmansthal, poeta e romancista, símbolo da Viena fin-de-siècle.” E ainda um parágrafo tão breve quanto capenga: “Nos dias atuais, alguns dos romancistas e dramaturgos mais famosos são Elfriede Jelinek (Nobel de Literatura) e o escritor Peter Handke.”

Sobre Schnitzler, sabemos do paralelo entre sua obra e os escritos de Freud, bem como da prestigiosa adaptação de uma de suas narrativas para o cinema por Stanley Kubrick: “De olhos bem fechados”. Que Zweig exilou-se no Brasil, fugindo do nazismo, e aqui se suicidou juntamente com a esposa, depois de ter cunhado, no título de um livro, uma formulação que já soou como profecia: “Brasil, País do Futuro”. Se Kafka, Musil, Trakl, Rilke e Kraus – erra o informe ao dá-lo como poeta – estão entre os estrangeiros mais traduzidos e cultuados, dificilmente o leitor brasileiro pensará neles como austríacos. São universais, no quadro da assim chamada “literatura de expressão alemã”.

Sobre Hoffmansthal, adianto que Pedro Reis Lima, amigo de velha data e hoje professor de alemão na “Zwei” em São Carlos, se prepara para nos oferecer um estudo acadêmico alentado. Sobre Jelinek, consta que ela própria terá ficado surpresa com a premiação da Academia Sueca, tendo afirmado que Handke seria mais merecedor.

Foi como tradutor de Handke que participei do “Simpósio sobre Literatura Austríaca”, como queria Alexandre Flory em seu convite. Ou “da Áustria”, como insistiriam, ao longo dos trabalhos, o austríaco Helmut Gollner (autor de uma história da literatura da Áustria) e os alemães Wolfgang Bock e Martin Huber. Riram ao ouvir que eu, honestamente, acho difícil pensar Peter Handke como austríaco.


Em artigo dos anos 1980, Hubert Fichte se perguntava quem, dentre os escritores alemães, seria efetivamente Weltliteratur. Günter Grass? Porque ‘O Tambor’ ocupava um lugar na estante de Liz Taylor? Quanto ao próprio criador do conceito, Goethe, ele pegava pesado: “No máximo como Instituto”.

Para um de seus comentaristas, Fichte se conta entre os “autores que tiraram férias da questão alemã”. O interesse pelas religiões afroamericanas fez com que ele viesse viver algum tempo no Brasil. Em “Ensaio sobre a puberdade”, minha primeira aventura como tradutor, ele funde, às vezes numa só frase, a miséria e o sincretismo baiano à cena teatral e homossexual de Hamburgo.

Quando do lançamento, João Silverio Trevisan escreveu resenha entusiasmada para a Folha de São Paulo. Ele que, recentemente, voltava a falar desse livro como uma descoberta inspiradora. Foi em Curitiba, onde leria passagens do recém-lançado “O rei do cheiro”. Sua presença num congresso de germanistas tinha uma justificativa: “Ana em Veneza”, um de seus livros de maior impacto entre nós, ganhou tradução para o alemão.

Perguntei sobre a recepção naquele país. Irrelevante, ele me garantiu, nem uma só resenha considerável. Da parte dos editores, ouviu que escrevera um livro para ganhar o Nobel, mas os alemães não toleram que estrangeiros falem sobre suas circunstâncias. Pudera, ele prosseguia, basta imaginar o assombro de um alemão à leitura das descrições dos jantares que ele, decididamente, copiara dos livros de Thomas Mann, um dos protagonistas de “Ana in Venedig”.

Não foi das mais auspiciosas a ocasião do nosso reencontro. Ao chegar ao Memorial da Cidade, onde se daria a leitura, julguei que houvesse algum engano. Mas o porteiro me garantiu que não. O escritor estava para chegar. E chegou. E éramos três: ele, uma estudante ligada à organização e o autor deste relato. Que nos tranquilizássemos, ele nos aconselhava, aos 70 você já não se espanta mais com nada.

Pior foi ouvir que, sem espaço suficiente para armazenamento, a editora Record decidira se livrar de enormes quantidades de livros. Entre eles, justamente,  a edição inteira de “O rei do cheiro”, que, os números diziam, não tinha mercado. Ainda lhe foi dado salvar um certo número de exemplares. Garantia talvez, imaginei, de que chegou mesmo a ser publicado. Trabalho árduo, intensa pesquisa, com estadas ali mesmo, em Curitiba, para entrevistas com gente ligada a O Boticário. Em São Paulo, a Natura chegou a elaborar a seu pedido uma fórmula, para ser incluída no romance. Não dava para contornar o trocadilho: não sobrou nem cheiro.

Só vim a saber o motivo do fracasso no Memorial, um dos muitos edifícios históricos restaurados e destinados à cultura na capital paranaense, ao ouvir que, no Paço da Liberdade, onde hoje, aristocraticamente, o Sesc se instala, eu perdera um grande acontecimento: a abertura da exposição “Thomas Bernhard e seus seres vitais”, com direito a leituras, arrebatadoras, do historiador Helmut Gollner, que afinal se consagrou como performático. Terminado o congresso, ainda tive um dia livre para conviver com as fotografias, os documentos e os manuscritos do espólio do escritor, trazidos pelo Consulado da Áustria.

Eu dizia que acho difícil pensar Handke como austríaco. O que não me ocorre à leitura de Bernhard, que, austríaco nenhum discordaria, tem muito mais a ver com o país que, paradoxalmente, odiou a vida inteira, com todas as forças. Num dos ambientes da exposição, havia uma sessão corrida, com registros que incluíam entrevistas concedidas pelo escritor ao longo da carreira. Numa das passagens, o entrevistador lhe pergunta se, afinal, a Áustria não acabava sendo a janela pela qual ele via o mundo. O sarcasmo da resposta só poderia ter mesmo levado ao delírio os jornalistas: “Uma janela eu não diria. Um postigo talvez.”



terça-feira, 16 de junho de 2015

Outros sertões

07 de setembro de 2014
por José Pedro Antunes

Guimarães Rosa depositava imenso interesse na tradução de sua obra para o alemão, destinada a servir de modelo seguro para as traduções que se fizessem para os demais idiomas europeus. Sempre generoso com seus tradutores, chegou a dizer que alguns resultados teriam superado o original, como se lê nas correspondências que manteve com alguns deles ao longo dos processos tradutórios. Insistia que, em todas as circunstâncias, levassem em conta sobretudo o leitor, ponto de convergência de todos os esforços. Vale ressaltar a sua inestimável contribuição, com pacientes esclarecimentos e até sugestões, sempre acertadas e aceitas, nos idiomas de chegada.

A correspondência com o alemão Curt Meyer-Clason ganhou edição bilíngue (UFMG, ABL e Ed. Record, 2003), lamentavelmente prejudicada por falta de uma revisão criteriosa, com cascatas de erros em ambos os idiomas. Vale ressaltar que o material já passara pelo crivo acadêmico, como dissertação de mestrado. Já a correspondência com o italiano Edoardo Bizzarri (UFMG e Ed. Record, 2003) teve mais sorte, o prazer da leitura plenamente assegurado por uma revisão irretocável.

Mas vamos falar de “Grande Sertão”, a tradução para o alemão de “Grande Sertão: Veredas”, que de fato se tornou uma espécie de mãe de todas as traduções do autor mineiro e marco literário, com o tradutor elevado à altura dos melhores de todos os tempos. Ele que também traduziu Drummond, Cabral, Borges, Cortázar, Garcia Marquez, Jorge Amado e tantos outros. Pois em Florianópolis, onde hoje leciona num Programa de Pós-Graduação em Tradução, está em ação um seu compatriota que pretende ir ainda mais longe.

Trata-se de Berthold Zilly, festejado e premiado tradutor de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, tendo transladado ainda para seu idioma, entre outros, “Lavoura Arcaica” de Raduan Nassar, “Triste Fim de Policarpo Quaresma” de Lima Barreto e “Memorial de Aires” de Machado de Assis. Para ele, Meyer-Clason acaba pondo o principal a perder: a literariedade; faz concessões ao leitor, oferecendo-lhe pouco mais que o conteúdo de uma saga sertaneja, em detrimento de aspectos relevantes da densa elaboração formal.

Zilly pretende entregar ao leitor do seu idioma, finalmente, uma obra literária: “Penso que é natural que uma obra desse quilate seja feita em duas etapas. A dele cumpriu seu papel desbravador, agora tenho que ir além.” Para tanto, segue os princípios da “transcriação”, defendidos pelos concretistas de São Paulo. “Transgermanização” foi o termo usado por Haroldo de Campos ao comentar a tradução de “Os Sertões” para o alemão. Se há dois anos Zilly, em Araraquara, dizia não estar absolutamente certo de chegar a bom termo, recentemente, em Curitiba, falava aos germanistas sobre um trabalho já em pleno andamento.

Ao oferecer alguns exemplos, no entanto, pode ter dado a impressão de que a empreitada, por monumental, às vezes esbarra na impossibilidade. Alguém lembrou que, na aplicação de seus princípios, o próprio Haroldo, teórico principal da “transcriação”, não foi além de poemas ou, com seu irmão Augusto de Campos, de fragmentos do “Finnegans Wake”, de James Joyce.


E o próprio Zilly, ao comentar as primeiras linhas do livro, parecia oferecer munição aos incrédulos. “Nonada”, por exemplo, fica mesmo em português. O leitor alemão médio saberá intuir o sentido da negação redobrada, intuição que necessariamente se verá reforçada pela repetição do vocábulo outras cinco vezes ao longo da narrativa. A oração seguinte começa e termina problemática: “Tiros que o senhor ouviu foram de homem não.” O alemão não admite substantivos não precedidos de artigo, tendência que ele pretende contrariar, preservando uma das marcas estilísticas do autor. E esse “não” ao final, desligado do verbo, enfático e tão característico dos falares regionais envolvidos, o que fazer com ele?



Ainda no Congresso da Associação Latinoamericana de Germanistas, em Curitiba, que teve a fala do tradutor alemão Berthold Zilly sobre sua “transcriação” de “Grande Sertão: Veredas”, a programação incluiu exibições, na cinemateca da cidade, de um documentário sobre os anos de Guimarães Rosa em Hamburgo, entre 1938 e 1942.


Vivendo em Berlim e ligadas à produção cinematográfica, Adriana Jacobsen e Soraya Villela tiveram a ideia de uma pesquisa sobre a breve estadia do escritor e compatriota na Alemanha nazista, no que se incluía investigar seu papel na libertação de muitos judeus. Para muitos, Aracy, a esposa a quem ele dedicaria mais adiante o grande romance, terá sido a verdadeira heroína desses feitos à sombra da embaixada brasileira. Mas é evidente que, sem a conivência e a assinatura do cônsul, os passaportes por ela providenciados não teriam sido expedidos.

No que se segue, algumas fotos do escritor a cortejar uma alemã, tentativa de romance vivida em cenário pontualmente idílico mas cercado por um vasto panorama pouco propício. Documenta-se a atuação de Rosa na embaixada, a correspondência que mantinha com amigos no Brasil, comentários sobre a preocupante escalada de Hitler e a notícia de que, desde a travessia marítima, revisava um livro de contos. Numa das missivas, dá a saber que revisava “O Burrinho Pedrês”, concluindo-se que o livro era “Sagarana” e surgiria dois anos depois de terminada a guerra, em 1947.

A atuação clandestina do cônsul, por mais que tenha tratado de convenientemente disfarçá-la, passara a chamar a atenção dos alemães, tendo sido ele chamado inúmeras vezes a prestar esclarecimentos sobre as relações que mantinha tanto na Alemanha como em seu país de origem, bem como sobre suas reservas em relação aos nazistas e à guerra. Ao espectador se oferecem, a maior parte do tempo em áudio, falas de pessoas que foram do seu convívio na época, direta ou indiretamente envolvidas nos trâmites que salvaram as vidas de muitos.

Ponto alto do documentário foi uma descoberta casual nos arquivos da tevê alemã: uma entrevista de 12 minutos, mediada pelo teórico e crítico Walter Höllerer, quando do lançamento da tradução de “Grande Sertão: Veredas”. No debate, uma das diretoras contou como se deu o achado, falando da surpresa, de resto a mesma do espectador, de ter pela primeira vez diante dos olhos imagens em movimento do escritor.

Apenas 6 minutos desse achado puderam ser incluídos. De início, contava a diretora, Rosa até ensaiou responder em alemão, mas a produção julgou mais impactante que o fizesse em português, vertido ao vivo por um profissional. Ao público brasileiro, resta lamentar a oportunidade perdida de vê-lo e ouvi-lo em seu tão decantado domínio do idioma de Goethe, fartamente documentado na correspondência com Meyer-Clason aqui anteriormente ventilada. E ao público alemão, afinal, nada restou, pois a entrevista jamais foi levada ao ar.


Colocados num momento chave do filme, mérito da montagem, o escritor vivo e se mexendo ante os nossos olhos, a pausada e carinhosa fala mineira, a falha num dos dentes da frente, que ele tenta esconder recobrindo-a insistentemente com os lábios, o sorriso onipresente nos atos de escuta e fala contaminam o filme inteiro, determinando sua recepção. É como, no restante do tempo, igualmente assim o tivéssemos podido contemplar embevecidos.


sexta-feira, 12 de junho de 2015

‘São muito mais ricos do que eu’

24 de junho de 2014

Oitavo filme de Wes Anderson (Os excêntricos Tenenbaums, Moonrise Kingdom), “O Grande Hotel Budapeste” teve estreia mundial na abertura do Festival Internacional de Cinema de Berlim 2014, quando conquistou o Urso de Prata. Foram decisivas para a feitura do roteiro as narrativas de Stefan Zweig, escritor mais lido e traduzido no mundo na primeira metade do século passado. No que se segue, Paul Katzenberger (Süddeutsche Zeitung) entrevista o cineasta quando do lançamento do filme na Alemanha. Tradução: Zé Pedro Antunes.

Seu filme festeja os velhos tempos e sugere um certo luto por eles terem passado inexoravelmente.

Quando começamos a escrever o roteiro, a ação se dava no presente. Aliás, na França e na Inglaterra, onde estávamos na época. Nisso me caíram nas mãos os livros de Stefan Zweig e comecei a devorá-los, ao reconhecer uma ligação entre o conteúdo deles e minha própria vida.

Os livros de Zweig surgiram há quase 100 anos. Que paralelos encontrou entre os primórdios do século 20 e este início de século 21?

Já o primeiro capítulo do primeiro romance dele que eu li, “Coração Impaciente”, descreve uma situação que me é familiar: Em busca de paz, um escritor conhecido vai a uma localidade fora de Viena, que acredita menos badalada do que antes. Mas logo na chegada topa com um conhecido, enfronhado nas fofocas da cidade e cioso de suas boas relações. Para não ser inamistoso, acaba se deixando envolver. Nisso, entra um notório herói de guerra, a quem o conhecido pronto volta sua atenção. Mas, visivelmente irritado, o herói lhes dá as costas.

Quase como no trato usual entre as celebridades, hoje, com os fãs ou pessoas que se fazem de importantes. No ramo cinematográfico, por exemplo.

Já vivi exatamente a mesma situação e conheço bem personagens como esses de Zweig. Quando conto uma história do passado, não me distancio de minhas próprias experiências e observações, é a mesma relação que tenho com uma história no presente.

Sobre a inspiração em filmes antigos, há alguma ligação intencional com “O Silêncio” de Ingmar Bergman? Ambos se passam num hotel, em um lugar imaginário.

Por um lado, “O Silêncio” tem ritmo bastante diferente. Por outro, vejo paralelos interessantes: O drama de Bergman também se passa num lugar fictício na Europa, no qual mesmo a língua é inventada. Estamos num grande hotel, em cujos amplos corredores esse jovem perambula. Tudo é extraordinariamente misterioso. Os corredores nós fomos buscar em “O Silêncio”. Se quiser, também a atmosfera desse clássico nos serviu de inspiração. [...]

Sobre pagar mal os atores, Bill Murray tocou no assunto durante o Festival de Berlim, achei que era piada. Mas vejo que era a sério mesmo.

Foi uma piada, mas ele tem razão. Se tivéssemos pago a todos o que normalmente recebem, não daria. Só os gastos com o pessoal consumiriam o orçamento inteiro.

Como conseguiu atrair esse elenco inacreditável?

Se eu disser que sabia exatamente como, estaria mentindo. Mas sempre ajuda dizer: “Foi o que acertamos para o último filme, e nele estão os que toparam fazê-lo.” E aí vem a reação: “Ok, se fulano fez, faço também eu”.

Curioso comportamento de manada, em pessoas que só fazem se comportar como algo muito especial. Inclusive pelos salários astronômicos.


Não dou a mínima para as finanças deles. São muito mais ricos do que eu. O primeiro que fiz nesses moldes foi “Rushmore”, com o Bill Murray. Ele acabara de ganhar 9 milhões de dólares por “O Dia da Marmota” (1993). Esse era o meu orçamento inteiro. Perguntei-lhe o que daria para fazer. Disse que ficaria satisfeito se lhe pagassem de acordo com as tarifas de ator: 9 mil dólares. Assim surgiu o meu sistema de salário mínimo. Bill Murray contribuiu substancialmente para isso, deve isso a si mesmo.