segunda-feira, 20 de julho de 2015

Atônitos átimos de instantes

14 de junho de 2015
por José Pedro Antunes

Atônitos, seguimos lidando com o tempo. Há quem opine que ele, hoje, transcorre muito mais rápido do que nunca antes neste nosso planetinha em trânsito. Leio que já lá se vão dez anos da denúncia do mensalão por um representante do povo que às vezes também soltava uns trinados líricos. Alguns dos denunciados, sabe-se, na prisão se repaginaram, se descobriram poetas, o que não os impede de eventualmente, sem perda alguma para a poesia, retornar à política. Mas, por falar em lirismo brasuca, o Mário Martinez me contou que o Caetano Veloso andava ensaiando uma das “Bachianas Brasileiras” do Villa-Lobos, a que conhecemos de “Terra em Transe” e do enterro do Glauber Rocha, na voz de Maria Lucia Godói. Há tempos houve na cidade uma exposição chamada “Ba(c)hianas Brasileiras”, com quadros que retratavam mulheres da terra da felicidade como o cantor.

Pois a turnê europeia dos corifeus do Tropicalismo está para começar. Quando nos dermos conta, por alguma matéria solta na imprensa minguante destes nossos atônitos átimos de instantes, já terá terminado. E sem deixar de passar por Israel, apesar dos quereres dos defensores da Causa Palestina. Entre eles, aquele ex-vocalista da banda com a vaca na capa do disco, que eu jamais imaginei engajado, menos ainda o fã dos tropicalistas que hoje diz ser.

Aliás, a turnê de ganhou nome extenso, como nunca antes na carreira que ora festejam, bem longe daquelas denominações tiradas do “baú de brasilidades” que os brasileiros, quando no exterior... Bem, vocês viram o que aconteceu com o sobrinho do Tim Maia, não é? Equação: 50 mais 50 dão “um século de música”. Ou: todos os tons de agora é cinza no colorido tropicalista. É assim que Caetano e Gil invadem as principais cidades do velho continente.

Em Loki, um dos tropicalistas da primeira hora (talvez já fosse isso mesmo antes da primeira hora) se dizia surpreso ao ser reconhecido nas ruas de Londres. Já em The Love We Make, aquele beatle que diziam que já tinha morrido não se amofina nem um pouco com o assédio de beatlemaníacos remanescentes e/ou recentemente assumidos.

O DVD Abraçaço já estava aqui me desafiando sobre a mesa da sala há semanas, mas por alguma razão eu hesitava em encará-lo. Até gostei muito, quando do lançamento, de poder ouvir sem parar os “thelonius monk’s blues” da safra mais recente, sobretudo por não ter dado com nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia.

Mas eu temia talvez não reconhecer o que havia debaixo das comportadas cãs de um apenas raro em raro rebolante senhorzinho acompanhado por três garotos musicalíssimos, antenadíssimos tanto no que se faz no mundo, como na agora chamada “música (im)popular brasileira”. O fato é que eles lançam mão de um baú de universalidades, espécie de caixa preta para ser aberta num futuro que já ninguém sabe se teremos.

Comentando com um amigo, baterista, metade da minha idade, ele até se aprumou na cadeira para um desabafo geracional: “Não sei como alguém consegue ver um show do Caetano Veloso.” Pensei em argumentar que o bardo baiano é dos poucos que ainda mantém o viço, e sem os vícios de antes, e que vai se safando agora que o rock já nem é mais atitude. Que isso que ele está fazendo é bem mais do que Robert Zimmermann vem perpetrando atualmente em sua norteamericana saga.

Coincidentemente, no domingo um crítico comentava, em tom elogioso, a temporada de Abraçaço numa choperia em Sampa. Na segunda, o outro grande jornal falava do derradeiro amplexaço, verdadeiro paradoxo ao ar livre: um show intimista para onze mil pessoas com suas engenhocas eletrônicas em riste, número surpreendente para estes nossos tempos de plateias minguantes.

Uma noite dessas, caminhando pelo centro, comecei a  ver pessoas em trajes bem ‘an(p)tigos’, espécie de ‘hindumentária’ momentosamente arrancada de um baú improvável. Perguntei à garota que me servia na Esquina Árabe se já era a Virada Cultural. Comanda na mão, ela me respondeu distraída: “Ué, esqueceu que tem show do Alceu Valença no Sesc?!”


domingo, 19 de julho de 2015

A soma dos meus personagens

3 de junho de 2015

[Excerto de Zum Tode Günter Grass: Abschied von einer Jahrhundertfigur (Sobre a morte de Günter Grass: Despedida de um personagem do século), de Sebastian Hammelehle (Spiegel Online, 13/04/2015). Tradução: Zé Pedro Antunes.]


Günter Grass (à esquerda, com Dieter Wellershoff) no encontro do Grupo 47 em 1964

O próprio Günter Grass, na verdade, não tratou de facilitar as coisas para si mesmo ao declarar, já em 1988: “Eu sou a soma dos meus personagens, inclusive dos homens da SS”.

Ninguém reconheceu, então, o peso dessa afirmação. Em entrevista televisiva a Ulrich Wickert, depois do lançamento de Beim Häuten der Zwiebel [Descascando a cebola], em 2006, o escritor falava sobre seus meses na SS-Panzer-Division “Frundsberg”: “Isso sempre me ocupou, esteve sempre presente, e eu era da opinião de que bastava ter feito o que fiz como escritor, como cidadão deste país, e que era o oposto do que me marcou na juventude durante o nazismo.”

Mesmo soando como se o escritor, no caso, se alçasse a juíz em causa própria, para então se desonerar com  uma absolvição – e mesmo que em absoluto não se pretenda compensar o período na Waffen-SS com os méritos ulteriores: impossível não reconhecer-lhe os maiores méritos pela abertura social da República Federal, a luta contra a política de colocar um ponto final no debate sobre o passado nazista (Schlussstrich-Politik) e a tendência a atenuar-lhe a gravidade (Vergangenheits-Beschönigung).

Grass – segundo ele próprio, inventor da fórmula “ousar mais democracia”, com a qual Willi Brandt deixou sua marca no século passado – se atirava com vontade em quase todas as confrontações – ainda que, ao criticar Israel com o poema Was gesagt werden muss [O deve ser dito], de 2012, tenha causado estranheza justamente nos correligionários de outrora.

Como escritor, de há muito ele se fizera uma instituição social, um personagem do século, como na literatura de língua alemã – tendo sido Thomas Mann o último da espécie – nem mesmo Brecht havia logrado. Mas nada lhe era mais estranho do que a postura aristocrática de Mann. Tinham algo de plebeu o tom áspero e a clareza verbal com que subia ao ringue.

Seu intelecto parecia aterrado. Radical de esquerda ele nunca foi, diferentemente de outros companheiros de geração como Martin Walser e Hans-Magnus Enzensberger, mas por muito tempo ocupou o lado esquerdo do espectro. A história da cultura de protesto na República Federal só pode ser reconstituída tendo-o como referência. Se antes ele se engajara contra as leis de exceção, o acordo bilateral da Otan ou o modo como se deu a reunificação, na velhice – ele que uma vez declarara aborrecê-lo o conceito de “literatura engajada”, um modismo dos anos 60 –, tomou posição contra o poderio dos bancos, pregou o abandono do capitalismo, subscreveu manifesto de oposição à deposição de lixo atômico em Gorleben.      

Nascido aos 16 de outubro de 1929 em Langfuhr, periferia de Danzig, hoje Gdansk, seu pai era comerciante de especiarias e a mãe, fato que Grass gostava exorcizar e mitificar, provinha da etnia eslava dos cassúbios. Cresceu numa casa de dois cômodos, com cozinha mínima e toilette no corredor. Quarto das crianças não havia: “Minha irmã e eu tínhamos, cada qual, um nicho sob os parapeitos das janelas da sala. Ali eu tinha meus livros e minhas coisas.”

Ainda que, depois de um período como aprendiz de cantaria entre 1948 e 1952, tenha estudado escultura e artes gráficas na Academia de Arte de Düsseldorf, Grass sempre se considerou um autodidata: “Fui um jovem inculto, ou apenas parcialmente culto. Aos 15, a escola acabou para mim e, quando pela primeira vez eu comecei a escrever a sério um manuscrito mais longo, eu sequer dominava a ortografia alemã.” O manuscrito de Die Blechtrommel [O Tambor] estava cheio de erros ortográficos.

O elã mordaz permaneceu com ele até o final. Um poeta alemão chamou-o certa vez de “Mister Testosterona”. Em suas memórias, o crítico Fritz J. Raddatz, seu amigo ao longo da vida, escreveu: “Ele sempre tem esse gesto centralizador, dominador, do ‘agora eu quero falar’; e fica nervoso e até mesmo irado quando os outros conversam sem esperar por sua palavra de esfinge, com a qual ele soluciona os sete enigmas do universo”.

Em 2010, Grass publicou seu último livro, “Grimms Wörter”, que reúne em um só volume uma biografia dos irmãos Grimm e a continuação de seus próprios escritos autobiográficos. Falando à revista Der Spiegel, ele relativizava a importância do Nobel: “Para mim, o Prêmio do Grupo 47, em 1958, na verdade foi mais importante, porque na época eu era pobre como um rato de igreja.” Desse prêmio, Grass tirou o melhor possível. De romancista debutante, tornou-se um personagem do século.


terça-feira, 14 de julho de 2015

De volta ao pós

30 de abril de 2015
por José Pedro Antunes



Em “Um filme falado”, do recém-falecido cineasta português Manoel de Oliveira, mãe (professora de História) e filha perfazem um cruzeiro pelo Mediterrâneo, em cujo ponto final vão reencontrar, respectivamente, o esposo e o pai, que delas se distanciara por motivos de trabalho. Numa das cidades visitadas, depois de extensa preleção sobre a Idade Média, e tendo comparado rápida e mentalmente as características daquele período com o que já sabe do seu próprio tempo, a menina pergunta: “Mamãe, em que Idade Média estamos agora?”

Longe vão os tempos em que o verbete do ‘pós-modernismo’ provocava frisson, de tão intenso calor para tão escassa luminosidade, a ponto de o poeta Augusto de Campos condensar o seu e o nosso incômodo num poema intitulado “Pós-tudo”. Ao trocar o acento agudo por um circunflexo, o articulista José Simão faria por transcriá-lo para uso e abuso de seus leitores.

O fato é que, com o uso do verbete e de suas variantes, em mais de três décadas se produziu um pântano de salivação considerável sobre uma questão ainda sem resposta: Que época é esta que nós estamos vivendo? Cada qual a seu tempo, dois luminares latinoamericanos, o poeta mexicano Octavio Paz e o ensaísta brasileiro Antonio Candido, defenderam ser o pós-modernismo a última etapa do romantismo. Tese evidentemente implícita no hit do Lulu Santos, que não deixa de externar sua dúvida: “Talvez eu seja o último romântico”.

Mas permita-me o leitor um olhar retrospectivo para o meu próprio percurso de estudioso da literatura, que se deu, em boa parte, sob a égide do debate acima tangenciado. Num curso de pós-graduação que frequentei na Unesp de Rio Preto, e eu tinha como companheiro de viagem e colega de classe o Marcos Murad, coube-me apresentar um seminário sobre o romance “Angústia”, de Graciliano Ramos. A título de curiosidade, mencionei que, já nos anos 1950, o crítico Wilson Martins dizia ser o autor em apreço um dos nossos ‘pós-modernistas’. Para além da surpresa com ocorrência tão precoce do momentoso termo, quis ressaltar-lhe a intenção meramente cronológica de assim classificar os autores que vieram depois do nosso verde-amarelo modernismo.

No seminário seguinte, uma colega já se respaldava nesse meu comentário, pontual, para cotejar duas obras fundamentais do “pós-modernismo”: “Vidas Secas”, de Graciliano, e o filme “Paris, Texas”, de Wim Wenders. Sim, o cotejo se justificava já nos títulos das obras, que consistiam de palavras justapostas com terminações idênticas: “Vidasss Secasss’ / ‘Parisss, Texasss’. A sala certamente tremeu sob o sibilante impacto do achado.

Nos anos que se seguiram, tratei de divulgar esse momento marcante dos estudos literários por estas bandas, sem suspeitar que um dos ouvintes pudesse vir a fazê-lo com arma ainda mais eficaz e absolutamente contemporânea. Um dia, dou com um grafite no muro do quintal da casa da Jane e do Bruno Moraes, na Vila Xavier. Tendo-o visto primeiro de fianco, achei, ideia pouco provável, que se tratasse de Nossa Senhora Aparecida. De frente, vi que me equivocara: era a reprodução do fotograma icônico do filme de Wim Wenders, com o protagonista, Travis (Harry Dean Stanton), caminhando por uma linha férrea, vindo na direção do observador. No alto, a legenda: “Vidas, Secas”.

Bem mais adiante, o Brunão me contou que um seu amigo decidira difundir a obra em alguns pontos da cidade. E foi no domingo último que eu me deparei com a materialização daquela nossa private joke. No muro de uma das casas que ficam defronte ao Bar do Zinho, portanto, dirigida em primeira linha ao público que frequenta aquele prestigioso point. Público que agora, se até ele chegar este meu comentário, terá a oportunidade de compreender a gênese e o real sentido dessa pós-moderníssima conjugação de referências.


sexta-feira, 10 de julho de 2015

Nana

5 de abril de 2015
por José Pedro Antunes

Vi Nana Caymmi ao vivo algumas vezes no início dos anos oitenta. Num quase ostracismo, pérolas aos poucos, entre os quais eu me alinhava onde quer que ela se apresentasse. Ao retornar da Europa, em 1981, constatei que, lamentavelmente, algo que nos distinguia, uma música popular de espantosa qualidade musical e literária, entrara em declínio, começava a se parecer com o padrão que infestava o show-business internacional.

Como todas as divas, afirma Gilberto Gil, Nana sempre foi muito “seletiva”, gostava do que gostava, nunca precisou “cortejar” outros tipos de música. Fazendo parte da tribo dos baianos, a partir de “Saveiros”, vivendo com Gil, Nana diz não ter gastado nem dois minutos com a Tropicália, não entendeu, não via a graça naquilo.

Afora as imagens de sua aparição num Festival da Record cantando “Bom Dia”, parceiro Gil ao violão e arranjo de Rogério Duprat, eu só conhecia o registro de sua participação no DVD “Brasileirinho” de Maria Bethânia. Volto a vê-la agora no DVD “Rio Sonata” (Quitanda, 2013), documentário a ela dedicado pelo franco-suíço Georges Gachot (o mesmo de “Música é Perfume”, sobre Bethânia).



Eu nunca associara Nana tão fortemente ao Rio de Janeiro como nos mostra o cineasta. E o faz com com extrema sensibilidade, sem obviedades, escolhendo ângulos pouco explorados da cidade, privilegiando momentos de névoa, sombra, escuridão, o anoitecer, o trânsito, pessoas silenciosas na praia ante o pôr-de-sol, garotos jogando pelada, populares opinando sobre a cantora, vendedores de discos usados lembrando suas canções.

[“Nana dizendo, numa cena do filme de Gachot ‘Eu me adoro cantando!’... ela o faz em sintonia conosco, com os ouvintes imediatamente apaixonados pelo seu canto, em sincronia com o crescendo do nosso deslumbramento.” (Caetano Veloso, no encarte do DVD)]

Direta, engraçada, debochada e desbocada, Nana fala de tudo e de todos e de si mesma sem rodeios nem reverências. Tanto lamenta a velhice e seus achaques, ela que para levantar da cama diz estalar inteira, como deplora algumas escolhas do seu repertório. Diz que gravar é ótimo, mas depois não sabe o que fazer com certas canções, “Ponta de Areia” sendo uma delas. Sobre o sucesso nacional, tardio, dela e da canção “Resposta ao Tempo” (anos depois de gravada virou tema de “novela da Globo”): “Vá entender a cabeça desse povo”.  

Começou a cantar aos dois anos de idade. E foi “Waltz of the flowers” de Tchaikovski. “Um terapeuta, um analista teria dito essa menina é louca, tem que internar”. Mesmo adorando música popular, sua paixão sempre foi o canto clássico. Estudou piano com Dona Nise Obino, a mesma professora de Nelson Freire. Muitas vezes, ela e Dori de saída, chegava o “Nelsinho”. Tinham vontade de ficar escondidos ouvindo aquele espanto. Ela e Dori também eram bons, pondera, para a medida da idade, 11 e 13 anos. Mas Nelsinho era o gênio que continua até hoje encantando o mundo.

É com “Dorivalzinho” que ela diz ter melhor se havido ao longo da vida e da carreira. Para interpretar “Saveiros”, o letrista Nelson Motta queria Elis, mas Dori disse que essa era para Nana. Só lamenta ter posto numa tonalidade tão alta, podia ter baixado pelo menos um tom e meio, ficaria mais confortável. E talvez não tivesse tido o mesmo impacto.

Aos 70 anos, carreira sem concessões e uma vida rodeada de “tanta coisa bonita”, Nana diz que “Acalanto”, que o pai compôs para niná-la, já lhe teria bastado para viver. Ela que, quis o ouvido do pai, no colo já ditara o próprio nome: Nana. “Ni na na na / nananinaná”, nasciam os compassos iniciais de uma obra-prima. Com ela termina o documentário, com o estribilho que Dorival aprendera de sua mãe: “Boi, boi, boi / Boi da cara preta / Pega esta menina / Que tem medo de careta”.


terça-feira, 7 de julho de 2015

Como Kafka leu Walser

31 de março de 2015

[Entre 2006 e 2007, uma exposição itinerante sobre Robert Walser ocupou a Galeria Klementinum da Biblioteca Nacional de Praga, cidade onde o escritor suíço teve leitores como Kafka e Max Brod. O excerto de um texto informativo sobre a exposição, de Walter Labhart, introduz aqui a narrativa de Walser à qual ele nos remete. Tradução: Zé Pedro Antunes.]   

Em 1907, leitor da revista literária Neue Rundschau, Kafka topou pela primeira vez com Aufsätze, de Robert Walser, com quem sentiu “uma íntima afinidade”. “Gebirgshallen”, esboço em prosa sobre o homônimo teatro de variedades em Berlim, estava entre seus preferidos, tendo-o inspirado a produzir a narrativa breve “Na Galeria”. Max Brod inclui essa miniatura em sua biografia, para demonstrar “o quanto Kafka fora influenciado pelo estilo de Walser em algumas de suas narrativas breves”.

De Walser a biblioteca de Kafka abrigava as primeiras edições de Aufsätze (Redações, 1913), Geschichten (Histórias, 1914) e Poetenleben (Vida de Poeta, 1918). Em 1910, ele presenteara Max Brod com um exemplar de Jakob von Gunten. Sobre o entusiasmo de Kafka por Walser, Brod afirma: “Às vezes ele irrompia inesperadamente em minha residência, só porque havia encontrado algo de novo, de grandioso. Foi assim com o romance-diário Jakob von Gunten, foi assim com as peças em prosa, pelas quais nutria uma paixão incomum.”


Gebirgshallen

Conhece o Gebirgshallen, na Unter den Linden? Talvez um dia possa dar uma ida até lá. A entrada custa só trinta peniques. Se calhar de ver a moça do caixa comendo pão ou salsicha, não precisa dar meia volta incomodado, trate logo de considerar que é hora do lanche, que ali vai sendo devorado. Em toda parte a natureza reclama seus direitos. Onde há natureza, há sentido. E aí você dará entrada na Montanha [Gebirge]. Onde uma grande figura, uma espécie de ogro bonachão, virá ao teu encontro. É o proprietário do estabelecimento, e fará bem em saudá-lo abanando o chapéu. Ele vê isso com bons olhos, e com bravura te será grato pela gentileza, meio que ameaçando levantar-se da cadeira em que está sentado. No imo d’alma adulado, aproxime-se da geleira, é esse o palco, uma raridade geológica, geográfica e arquitetônica. Assim que tiver tomado assento, receberá ofertas de bebida de uma quiçá sofrivelmente vistosa garçonete. Há que dar-se por satisfeito com o que ali se apresenta. Tampouco nas soirées do Kammerspiel [teatro de câmara] se verá borbotar a feminina finesse. Fique atento para não agrupar ao redor de sua pessoa pagante demasiados copos cheios de sidra trazidos e lançados. As moças gostam de se aproximar de cavalheiros que demonstram compaixão para com elas. Compaixão é inconveniente nas degustações artísticas. Atentou agora para essa bailarina? Kleist também teve de aguardar anos a fio por reconhecimento. Bate palmas com força, ainda que ela quase tenha te desagradado. Que é do teu cajado? Deixou em casa? No Gebirge, da próxima vez, e para todos os casos, convém aparecer, bem ou mal, esportivamente aparatado. Seguro morreu de velho. Que excitante princesa alpina saltita em tua direção? Essa é a Pequena. De você ela quer um cheio até a borda por quinze peniques. Conseguirá resistir a esses lábios, a esses olhos, a esse doce, estúpido pedido? Lamentaria por você, se o conseguisse. De novo se abre, agora, a fenda na geleira, que é o palco, e, a poder de sons e níveos flocos de graça, uma cançonetista dinamarquesa te porá a funcionar. Você agora bebe um gole do seu morno leite de vaca montanheza. O proprietário percorre o local em criterioso bota-fora. Ele zela pela decência e pelo bom comportamento. Não deixe de ir, é o que eu te digo, não deixe! Pode ser que um dia volte a me encontrar. Mas eu, em absoluto, não te terei reconhecido; fascinado por mágicos poderes, costumo permanecer quieto no meu canto. Nele eu sacio a minha sede, melodias me acalentam, eu sonho.



domingo, 5 de julho de 2015

Canção de Siruiz

25 de março de 2015
por José Pedro Antunes

Faltou dizer que não é minha a formulação ‘canção peregrina’, é do Guimarães Rosa. Mas há tanto incorporada à minha fala, que já posso dizê-la tão minha quanto a canção em pauta na crônica de quarta passada. Em Rosa, eu me iniciei com O Recado do Morro, que, justamente, narra o nascimento de uma dessas canções.

Para ler Grande Sertão: Veredas alguém me deu um conselho. Que eu lesse em voz alta as primeiras 20 ou 30 páginas. Em sendo a transcriação de um relato oral, o recurso serviria para espantar o preconceito de que o livro resultasse indevassável. Fui além, tendo inventado melodias para os versos que entremeiam a narrativa: “Urubu é vila alta, / mais idosa do sertão: / padroeira, minha vida –  / vim de lá, volto mais não?”

Ao ler em público, ou pedir a um aluno que leia para a classe, o mais das vezes acabo me penitenciando. Dos recorrentes malogros, sorvo consolo na ideia de que um texto escrito, em primeira linha, pressupõe silenciosa fruição individual. Por outro lado, na Alemanha eu me habituei à tradição das leituras públicas, com escritores lendo passagens de obra recente. Num documentário sobre Kafka, um entrevistado conta ter conhecido o escritor em Munique, onde leu excertos de Na Colônia Penal. Nos diários, o próprio Kafka anotaria que a leitura havia sido um clamoroso desastre.

O Serão Literário, que promovíamos na Faculdade de Ciências e Letras, tinha um bordão: “a literatura na voz do autor”. Mas não foi fácil convencer todos os convidados a adotá-lo. Houve quem preferisse contornar a incumbência, e até quem delegasse a missão a algum abnegado dentre os circunstantes.

Volto a ouvir um registro que o MEC produziu em 1997. Para inaugurar a Coleção Ler e Ouvir, que tinha por objetivo divulgar a literatura brasileira em CD, o escolhido foi João Guimarães Rosa, com 7 episódios de Grande Sertão: Veredas, nas vozes de Antonio Candido, Davi Arrigucci Jr. e José Mindlin.

Antonio Candido não apenas conhece em profundidade o texto roseano, como na infância terá conhecido o homem que inspirou um dos personagens, o Hermógenes. É o que me me faz saber um especialista, Renato Bueno Franco, desautorizando o meu comentário de que o Candido estaria mais para um dos nossos caipiras do interior de São Paulo. Davi Arrigucci Jr. é quem se entrega mais decidido a aventuras de alto risco, ao dramatizar cada intervenção direta dos personagens na fala do narrador. E a verdade é que até se mostra à vontade em meio ao vozerio que engendra.

Já o Mindlin, bibliófilo renomado, se salva de resvalar para o tom professoral ou crítico que às vezes contamina a interpretação dos parceiros de leitura. Sua performance é a do amante da literatura, soberanamente confortável entre livros, quase um vovô a contar uma história, em absoluta empatia com os ouvintes acocorados à sua volta. De sua voz, as palavras fluem como se produzidas no instante em que se pronunciam, com a tranquilidade de quem se sabe apenas leitor, com a reverência de quem jamais se sobreporia ao objeto da leitura, com a generosidade de quem se compraz em compartilhar com o próximo os prazeres de que se alimenta.

No que seria a segunda das 10 faixas do CD, surge então a referida ‘canção peregrina: a Canção de Siruiz, a dos versos que eu cantarolava, a meu esmo, ao ler pela primeira vez o romance. Diz o encarte que a composição é de Luiz Henrique Xavier a partir de melodia folclórica cantada e adaptada por Antonio Candido ao texto de Guimarães Rosa: “Corro os dias nesses verdes, / meu boi mocho baetão: / buriti, água azulada, / carnaúba – sal do chão...”


E o professor Candido se revela um intérprete extraordinário, cuja voz se acomoda com inteira naturalidade num arranjo que faz por cercá-la de um emaranhado de outras vozes e ruídos. Para que ela ressoe em pureza e simplicidade no sertão que é o mundo: “Remanso de rio largo, / viola da solidão: / quando vou pr’a dar batalha, / convido meu coração...”