domingo, 20 de setembro de 2015

Sonhos de Mestre

31 de julho de 2012

Katja Nicodemus, conhecida por seu trabalho como crítica de cinema, atua tanto na imprensa escrita como nos meios audiovisuais, tendo já entrevistado Woody Allen em inúmeras ocasiões. Na mais recente delas, realizada para o Die Zeit Online, o tema foi a influência da obra do diretor sueco Ingmar Bergman sobre a visão de mundo e de cinema do cineasta americano. Tradução.: Zé Pedro Antunes.



Ao final de Manhattan, o herói, que você mesmo representa, esboça uma pequena lista das coisas que fazem com que a vida seja bela apesar de tudo. Depois de mencionar Groucho Marx, a segunda frase da Sinfonia 41 C (Júpiter), de Mozart, Marlon Brando, as maçãs e peras de Cézanne, ele exclama: “Ah, e filmes suecos, naturalmente!”

Naturalmente! O que, para mim, era o mesmo que  Bergman – ele era, por assim dizer, o cinema sueco.

Qual foi, para você, o primeiro Bergman?

Noites de Circo, de 1953. Trata de um diretor de circo que, tendo abandonado a mulher e os filhos, depois de muitos anos pensa em voltar. Ainda me lembro, exatamente, do estado em que saí do cinema: abalado e o mais profundamente impressionado.

O que mais admira em Bergman?

É ele conseguir direcionar a câmera para um rosto e deixá-la rodar. Deixava que ela seguisse à solta, alcançando assim um efeito enorme. Nada a ver com o que se aprende nas escolas de cinema. E não importa de quais assuntos ele tenha tratado: todos os temas por ele abordados parecem me atingir diretamente. O que eu mais admiro é sua arte de dramatizar tais temas e narrá-los de modo absolutamente entretenedor.

Será “entretenedor” a palavra correta? 

Em todo e qualquer caso. Para entreter, um filme não tem que ser divertido. Os filmes de Bergman são o oposto cabal do tédio. Portanto, entretenedores. No melhor sentido da palavra.

Qual é o teu Bergman preferido?

São três filmes que nunca mais me abandonaram: Morangos Silvestres, O Rosto e O Sétimo Selo, sendo este último o meu Bergman preferido. Sempre revi todos os filmes dele, e há naturalmente dúzias de cenas grandiosas. Mas a mais impressionante é a cena final de O Sétimo Selo: a dança da morte sobre a colina no horizonte. Ao ver Morangos Silvestres, O Sétimo Selo e O Rosto, a gente compreende que nunca mais haverá, na história do cinema, uma tal junção de intelectualidade superior e maestria técnica.

Chegou a estar com Bergman?

Uma vez, em Nova Iorque, num encontro acertado pela Liv Ullmann. Jantamos na suíte dele. E ele não era o gênio sombrio que eu esperava. Era uma pessoa bem normal, que falava de mulheres e de resultados esportivos. Bem depois, ele chegou a me ligar da ilha em que decidiu viver isolado. E me contava do que tinha sonhado. De sonhos que tinham a ver com o medo de falhar no set de filmagem: algo assim como chegar ao set e, de repente, não saber mais onde posicionar a câmera. Era isso que ele sonhava depois de quinze a vinte obras-primas!

Em Stardust Memories, há uma cena que ficou famosa como perfect moment: nela se vê Charlotte Rampling, num dia de verão, a folhear os jornais, com a música de Louis Armstrong a ocupar o espaço sonoro. Haveria, para você, um perfect moment em Ingmar Bergman?

O fato é que esses momentos, às vezes, são da maior banalidade. Eles se tornam perfeitos apenas porque te ocorrem num certo instante. Como certa vez, ao sair de casa, eu me recordava de um dia em que queria ir ao cinema, e de repente vi esvoaçarem sobre Nova Iorque os primeiros flocos de neve daquele inverno. Em Bergman, há um momento em que alguém simplesmente se acha por ali sentado, comendo morangos silvestres, enquanto uma criança brinca. É isso que eles são, esses momentos: epifanias. Momentos que são ao mesmo tempo tão comuns e tão extraordinários. 


foto: Woody Allen e Mariel Hemingway em Manhattan (1979).




quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Cinema Mudo: trilhas sonoras contemporâneas

9 de abril de 2013
por José Pedro Antunes

“Com trilha sonora contemporânea, cinema mudo tem cada vez mais espectadores”, dizia a manchete da Gazeta Russa em 25/01/2012. Na foto, a silhueta de um violonista se destaca à frente da tela onde se projeta o filme Luzes da Cidade, de 1931. O cinema é um dos mais antigos de Moscou, o “Khudojestveni”. O violonista é o jovem artista russo Arseni Trofim, a executar a trilha que compôs para o grande clássico de Charles Chaplin.


É um trabalho que ele e outros artistas desenvolvem em vários pontos do país. Para que os resultados possam ser compartilhados, músicos de Kemerovo e Tomsk criaram um festival batizado como “Tapeur” (do francês, em desuso, para se referir a quem se dedica à sonorização de um filme usando partituras já existentes). Com o objetivo de atrair o grande público para os filmes clássicos e experimentais do cinema mudo, Arseni Trofim criou o projeto “Sala Tapeur Contemporânea”.

Entre nós, alguns músicos se dedicam a criações semelhantes. O Sesc/Araraquara já promoveu uma oficina ministrada pelo compositor Lívio Tragtenberg, que resultou numa apresentação de Limite, de Mário Peixoto – trilha sonora executada com a participação de músicos locais. Um outro evento trouxe a banda “Frame Circus”, formada por Tatá Aeroplano (Cérebro Eletrônico, Jumbo Elektro), pelo compositor de trilhas sonoras Paulo Beto e por Maurício Fleury (Multiplex e Montage).


No Sesc/S. Carlos, quinta-feira última, para acompanhar Mistérios de uma Barbearia (Karl Valentin, 1922), o evento “Brecht em Cena” convidou o pianista Tony Berchmanns. As técnicas, e mesmo alguns macetes surrados, ele comentava depois da exibição, são em grande parte devedores de Richard Wagner, cujo método, pioneiro, se adequa às necessidades dos “neotapeurs”. Tivesse alcançado o cinema sonoro, o compositor certamente teria tido êxito como criador de trilhas para o cinema.



Berchmanns improvisa grande parte do que executa. Houvesse uma segunda sessão, o resultado seria outro. Mas próximo. Não há como fugir a convenções de eficácia comprovada. Como a elementar diferença entre acordes maiores (mais alegres, festivos), e acordes menores (tristes, depressivos). Ou o uso da dissonância para suscitar inquietações, gerar expectativas. E, para marcar os saltos da narrativa, acordes instigantes, bruscamente martelados no piano.

Mesmo tendo visto o filme antes, o pianista opera como um tradutor, ao perseguir, com sonoridades, ideias e sentimentos implícitos nas imagens. Mudo ou sonoro, todo filme pressupõe uma partitura. Muitos dos elementos da composição musical são os mesmos que norteiam a composição fílmica.

No conceito de “leitmotiv” (motivo condutor), que vem justamente de Wagner, temos um substantivo derivado do verbo latino que nos deu “mover” (filme, em inglês, se diz “movie”), acoplado ao radical do verbo alemão “leiten”, que significa “conduzir” (também usado no âmbito da música) ou “dirigir” (de amplo uso tanto na música como no cinema).

Já a caminho do cinema sonoro, para se distanciar da literatura e do teatro, alguns cineastas buscaram a proximidade da música. Em 1927, o alemão Walter Ruttmann rodou Berlim: Sinfonia da Metrópole – um dia na vida da cidade, com o amanhecer, o dia pleno, o anoitecer e a vida noturna sendo os movimentos de uma composição de Edmund Meisel.




Foi a matriz de um gênero, o “filme-sinfonia”, que gerou sucedâneos. Em 1929, surgia São Paulo: Sinfonia da Metrópole, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, dois jovens de origem húngara, que na época eram donos dos melhores laboratórios do país. Mostravam uma cidade que deixava de ser mero entreposto comercial para se tornar o maior centro financeiro do país. Em tempo: o filme alemão foi lançado em DVD pela Continental, enquanto a película brasileira, além de se oferecer na net como DVD “raro”, também está disponível no YouTube.