1 de novembro de 2012
Ramon Schack (stern.de)
entrevista Harry Baer, ator e produtor, amigo e alter ego do cineasta.
Tradução: Zé Pedro Antunes.
[Há 30 anos, vítima precoce
de uma overdose para muitos nunca suficientemente esclarecida, morria em
Munique o cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder. Para o entrevistado, a
hipótese do suicídio fica descartada, pois já estava em produção um filme que
teria o nome de uma canção de Joachim Wit: “Ich bin das Glück dieser Erde” (Eu
sou a felicidade desta terra). E Fassbinder o orientava no sentido de
permanecer atento a tudo que se relacionava com os anos 60, sobretudo as
canções, pois daí eles poderiam tirar vários outros argumentos.]
Que lembranças você guarda do
dia 10 de junho de 1982? Como soube que Fassbinder havia morrido?
Algumas horas antes nos
falávamos ao telefone. Sobre um bar que eu acabava de visitar e me pareceu
apropriado para uma locação. Ele, bastante interessado. Algumas horas depois,
estava morto.
Você era do círculo mais
íntimo. Foi totalmente inesperado?
Sim, me pegou desprevenido,
como uma marretada. Era o abismo, perdera um amigo muito bom, não via qualquer
perspectiva profissional e comecei a beber desinibidamente.
Mas nesse mesmo ano você
lançava uma biografia...
Pois o livro me salvou da
derrocada. Escrevendo, consegui me livrar do pântano. Graças à pressão da
editora, consegui terminá-lo. Me botaram o cano do revolver no peito. Era pra
ser lançado a tempo na Feira do Livro. Insisto: eu não vivia um bom momento.
Havia indícios de uma
decadência física do cineasta?
Ao vê-lo, hoje, em aparições
na tevê ou em cenas de que me recordo, dá para reconhecer sinais de alerta. O
consumo desbragado de drogas era mais do que visível. Talvez me faltasse
distância. Trabalhávamos bastante juntos, éramos ambos workaholics. Tão
ligados, não dava para perceber os indícios. Eu, talvez, demasiado ocupado
comigo mesmo. Mas não pressentia que a morte pudesse levá-lo tão cedo.
Com ela, fortaleceu-se a
ligação entre os companheiros de estrada e amigos de Fassbinder?
Ao contrário. Gravitávamos em
torno dele. Tudo se desgovernou. [...]. Algo que já começara, aliás, um tempo
antes. Progressivamente as pessoas iam desaparecendo daquele círculo, ficavam
de mal com ele, para depois retomar o contato.
Quando e onde conheceu
Fassbinder?
Foi em 1968. Um colega de
escola, o Rudolf Waldemar Brem (ator), me levou para o teatro. Uma noite, na
plateia, Fassbinder e Hanna Schygulla se divertiam muito com o meu desempenho.
Aos poucos, fomos nos conhecendo, começava o trabalho conjunto no Action
Theater [grupo teatral de Munique]. Até então eu tinha outros planos para o meu
futuro. Como a maioria de nós, eu era politizado e queria ser professor. Em
1968, no início do semestre, as universidades entraram em greve. Quanto ao
estudo, nada a fazer. Permaneci no teatro. E o trabalho com Fassbinder se
intensificou.
O nome Fassbinder já
significava algo para você?
Não, em absoluto. Pra mim,
era um carinha que fumava, um dândi. Seu sucesso só começou um pouco depois, em
1969, com o filme Katzelmacher [O Machão].
Em Wildwechsel [A
Encruzilhada das Bestas Humanas] você faz um rapaz de 19 que se relaciona com
um garoto de 13. Na época, um escândalo. Entre outras coisas, pelas cenas de
nudez. Isso te trouxe dissabores ou fama?
O filme deu o que falar. Não
só pela nudez. [...] Mas Fassbinder vivia sob o lema: “Falem bem ou mal, mas
falem de mim”. Isso, claro, não impediu que o filme ganhasse amplo
reconhecimento.
Dava pra ver teu órgão sexual
e era esse o assunto.
Não só isso. Cortaram o close
do meu pênis na versão para o cinema. Eu achava engraçada aquela parte do meu
corpo em lilás.
Fassbinder foi por muito
tempo considerado de esquerda naquela época. Em Mutter Küsters Fahrt ins Himmen
[A Viagem de Mãe Küster ao Céu], porém, ele acerta contas com a esquerda chique
e expõe sem perdão a vida mentirosa das pessoas desse meio. O encontro com o
escritor e dramaturgo Franz Xaver Kroetz, à época membro ativo do PC alemão,
terá sido uma motivação para esse filme?
Esse era, na época, um
verdadeiro bolchevista de salão. Terá inspirado a muitos. Mas Fassbinder era um
não-conformista e livre-pensador. Não se indispôs apenas com a esquerda chique.
Nunca ofereceu imunidade artística a certos meios e grupos. Algo como o
“politicamente correto” não era com ele. Tratava-se de representar o
comportamento, a natureza humana. Em seus filmes, essas representações eram
ambientadas nos mais diversos meios. Em Faustrecht der Freiheit [O Direito do
Mais Forte], também a subcultura homossexual é levada a perder suas gorduras, o
que causou muita indignação. E o filme não tinha a ver senão com exploração. Só
por acaso a ação foi ambientada no meio homossexual.
Nesse filme você tem um importante
papel secundário. Não era arriscado fazer papel de homossexual?
Eu não pensava em coisas
desse tipo. Nós todos vivíamos e trabalhávamos, constantemente, além das
representações da moral burguesa.
Como descreveria a postura
política básica de Fassbinder?
Nem de direita nem de
esquerda. Era um artista, e dos bons ainda por cima. Como todos os bons
artistas, não importa em qual âmbito, era algo assim como um espírito livre
anarquista.
Recentemente a Fundação
Fassbinder voltou à pauta. Ingrid Caven, ex-mulher e companheira de muitos anos
do cineasta, acusa Juliane Lorenz, que preside a Fundação, de andar falseando a
história. Qual a tua posição nesse embate?
Primeiro eu vou ouvir os
argumentos, depois formo uma opinião.
Na tua opinião, as acusações
fazem sentido? Ingrid Caven não é, aliás, a única pessoa a se manifestar dessa
forma.
A Fundação Fassbinder é o
trabalho da vida da senhora Lorenz. Ela investiu décadas em sua construção.
Isso tem que ser respeitado. Pode ser que, nesse meio tempo, distância e
objetividade tenham lhe faltado. Afirmar que Fassbinder não era homossexual e
dependente de drogas não corresponde à verdade. Fassbinder não era um santo.
Era um ser humano com todas as suas forças e fraquezas. Eu, pessoalmente, não
entro nessa de fazer dele, a posteriori, um ícone. Suas rupturas e contradições
eram parte de sua personalidade, provavelmente também a fonte de sua
inacreditável vitalidade, de sua energia criativa. Suponho que isso agora se
deva à influência da mãe de Fassbinder, que talvez tivesse interesse em relegar
ao esquecimento alguns dos atributos do filho que não eram do agrado dela.
O que você deve a Fassbinder?
Do ponto de vista
profissional, tudo. Com ele, eu aprendi a carpintaria do cinema. Sou-lhe muito
grato por esses 14 anos de vida a seu lado. Foram também os mais produtivos e
instigantes de minha vida, ainda que nem sempre os mais fáceis. Ele continua a
ser até hoje o maior cineasta alemão. Como pessoa, foi um amigo muito querido.
Um amigo de quem eu continuo a sentir falta. Se estivesse vivo, eu estaria
fazendo filmes com ele. Pena que – e isso há tanto tempo já – tenha ido tão
cedo.
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Notas do Tradutor:
Na edição brasileira, a biografia escrita por Harry Baer chama-se: Posso
dormir quando estiver morto. A vida sufocante de Fassbinder (Brasiliense,
1985).
Tanto Fassbinder como Franz Xaver Kroetz escreviam
peças populares bávaras na esteira de Marie Luise Fleisser, que os considerava
seus filhos. Com Kroetz, Fassbinder escreveu, para um filme de tevê: Acht
Stunden sind kein Tag [Oito horas não são um dia]. Dela, com o
“antiteater” de Munique, Fassbinder encenou e depois filmou a peça Pioniere
in Ingolstadt [Pioneiros em Ingolstadt], que inclui entre seus 10
livros preferidos. A ela o cineasta dedica Faustrecht der Freiheit [O
Direito do Mais Forte].
Ingrid Caven foi casada com Fassbinder, tendo atuado em vários de seus filmes.
É uma das mais reverenciadas cantoras do cabaré alemão.
Juliane Lorenz fez a montagem de parte considerável dos filmes do cineasta.
Liselotte Eder (ou Lilo Pempeit), mãe de Fassbinder, atua em 20 de
seus filmes.