sábado, 29 de agosto de 2015

Um SR. Talento

24 de agosto de 2015
por José Pedro Antunes




Sérgio Ricardo? Ah, esse quebrou o violão naquela noite em 1967. Só agora, com o filme de Ricardo Calil e Renato Terra, ele próprio veio a saber que armaram contra ele. Para fazer de um festival de música popular um programa de TV, havia que distribuir os papéis: ele seria o vilão.





Mas Sérgio não era nenhum novato, como Edu Lobo, Chico, Caetano, Gil, os Mutantes. “Beto Bom de Bola” – ou “de vaia”, como ele mesmo ironizava naquela noite infeliz – não estará, talvez, entre as suas melhores canções.

Querem uma obra-prima? Postada no youtube, é dele uma animação digital para seu maior hit: “Zelão”. Outras? No site que reúne tudo sobre  sua trajetória e obra, incluindo a discografia completa, para ouvir e baixar.

Na última quarta, no Sesc/SC, tocou-me mediar o bate-papo com esse que, entre tantas coisas, compôs a trilha de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Glauber lhe arrancou, ele afirma, o de que nem ele próprio se sabia capaz: a voz de cantador cego, nordestino, que pontua as aparições de Antonio das Mortes.



Paulista de Marília, nascido João Lutfi, o nome artístico o acompanharia como pianista na noite, ator de novelas e filmes, cantor de sambas românticos, compositor e intérprete de bossa-nova. Fez parte do elenco que, em noite histórica no Carnegie Hall, lançou o gênero para o mundo.

Dentre seus filmes, destaquem-se “Este mundo é meu”, curta premiado nos EUA, e “A noite do espantalho”. Escrito o roteiro, conta, eis que lhe surge à porta “o pessoal de Pernambuco”, aliás, dois cabeludos: Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Em Alceu, seu tanto alucinado, cabeleira farta, ele viu que ganhara o “espantalho” para o filme.

 


No cinema, projetou ainda o irmão, Dib Lutfi, que se tornaria o mais criativo e requisitado câmera do cinema novo. E, na música, duas parcerias de futuro: João Bosco & Aldir Blanc, Fagner & Belchior. Mas essa já é uma outra história, a do “disco de bolso”, uma sua idéia, pioneira, que o Pasquim comprou e lançou nas bancas do país. 

Talvez o leitor não consiga imaginar o espanto que foi encontrar nas bancas, no início dos anos 1970, encartado num jornal chamado O Pasquim, o compacto duplo que trazia: no lado A, Tom Jobim, com a inédita “Águas de Março”; e no lado B, “um tal de João Bosco”, com “Agnus Sei”, em parceria com Aldir Blanc.



Começava a breve história do “Disco de Bolso”, idealizado por Sérgio Ricardo. A 2ª. edição trazia Caetano Veloso, que retornava do exílio londrino, com “A volta da Asa Branca”; e um cearense, de nome Fagner, com “Mucuripe”, em parceria com Belchior.

Falido O Pasquim, ficamos sem os seguintes, que trariam, respectivamente, Egberto Gismonti e Alceu Valença, Paulinho da Viola e Luis Melodia.

Para falar da importância de Sérgio Ricardo para a geração que se projetou naquela noite em 1967, repasso ao leitor um pouco do que ele contou à platéia do evento “Achados e Perdidos”, no Sesc/S. Carlos.



Era comum novos compositores e intérpretes virem-lhe bater à porta, meados dos anos 1960, quando ninguém imaginava o que estava por vir. Um dia, um garoto chamado Chico queria lhe mostrar “um sambinha”, acompanhado por um amigo. O sambinha: “Sonho de um carnaval”. O amigo: Toquinho. Sem crer no que ouvira, Sérgio perguntou se havia mais. E havia: “Pedro Pedreiro”. O resto o leitor sabe – e certamente cante. Emoção maior foi, décadas depois, ouvir da boca do próprio Chico, que este, quando sonhava ser cantor de rádio, queria ser Sérgio Ricardo.

O “Achados e Perdidos” é criação do nosso conhecido e querido Chico Galvão – animadora presença no Sesc/Araraquara em seus primórdios.



O convidado, no caso, recebe em casa uma mala, a ser preenchida com objetos reveladores de sua trajetória e, depois, desfeita diante do público.

No encerramento do bate-papo com o SR. Talento, a produção me soprou uma última pergunta: “Sérgio Ricardo, o que você achou e o que você perdeu na sua vida?” Do Carnegie Hall ao Vidigal, onde hoje vive, é uma longa história. 

Do Morro do Vidigal, onde vive há alguns anos, Sérgio Ricardo só sairia mesmo para voltar a viver em sua terra natal. É no “Buracão”, reserva de mata atlântica, lugar paradisíaco nos arredores de Marília, que ele pretende rodar um dos dois filmes em preparação. Ali, viveria feliz, não fossem as premências da vida material, algo inacreditável, diga-se, para um realizador do seu porte e em tantas frentes. Em São Carlos, o compositor antecipava uma bomba prestes a explodir na imprensa: o escandaloso desvio de direitos autorais. Um certo Coitinho, no Rio Grande do Sul, estaria a receber pela trilha do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.



No Vidigal, não faz muito tempo, Sérgio liderou a resistência da população contra a remoção de uma parte do morro, para dar lugar a um elevado. Ou seja, continua engajado como sempre foi, pronto a abraçar as causas de uma população, a brasileira, que é o que ele diz ter achado em sua vida. Poderia ter vivido e produzido em vários outros países, mas não trocaria, por nada, este povo tão especial que é o brasileiro, capaz de um dia acordar, reagir, fazer sua revolução por meios inéditos, sem violência.

Chegou a filmar no Líbano, na localidade de onde vieram os seus pais. Teve financiamento do governo libanês, mas o resultado, considerado subversivo por incitar a população a deixar o país – assim entenderam as autoridades –, acabou apreendido, ficou por lá, ninguém viu, desapareceu. Aqui também enfrentou problemas por ter a mania de dizer o que pensa, sofreu boicotes, conheceu um certo ostracismo. Por pouco, não desaparece do cenário cultural.

 


O título desta série é o mesmo de um seu LP, lançado pela Elenco em plena bossa nova. A gravadora, de par com o extremo bom gosto musical, primava pelas capas inovadoramente conceituais e de um apuro gráfico até então inédito entre nós – à altura daquele momento tão especial para a cultura brasileira. A conferir no site do compositor. Em construção, mas já fartamente abastecido. 

Artista multimídia que é, desde sempre, como concilia tão variados projetos? Sérgio Ricardo é do tipo que faz uma coisa de cada vez. Quando pinta, por exemplo, esquece que é músico ou cineasta. Também nunca se ligou no sucesso. As coisas acontecem. Com Sérgio Mendes, poucas afinidades. Sempre preferiu o outro bossa-novista que fez carreira internacional: Eumir Deodato. O Tropicalismo? Claro, foi uma rendição ao mercado. Mas não esquecer o imenso talento dos tropicalistas. De Caetano Veloso, “um gênio”, ele cantarola acordes de “uma obra-prima”: “No dia em que eu vim me embora”.



Geraldo Vandré? Chegaram a fazer shows e a gravar canções um do outro. Dizem que ainda continua compondo. Cadê? Suplantar Jobim e Chico diante de um Maracanãzinho lotado, e só com o violão, não é pra qualquer um. Um grande artista.



Melhor canção da MPB? “Disparada”. Variações melódicas e harmônicas são páreo para grandes compositores eruditos. Theo de Barros, o autor, arranjou algumas faixas do seu LP “Arrebentação” (1971). Disco mais importante? “Sérgio Ricardo” (Continental, 1967). Na capa, a foto de sua aparição no fatídico Festival da Record. Os censores não gostaram da faixa branca a encobrir-lhe a boca, nem do título de uma das canções: “Calabouço”.



Quanto ao cineasta, diz Glauber Rocha, em 1964, ano de lançamento de “Esse mundo é meu”: “É um legítimo passaporte de cineasta para o músico consagrado que é Sérgio Ricardo. Moderno, vivo, alegre, carregado de poesia e esperança, o filme demonstra, mais uma vez, que o cinema novo conquista dia a dia sua posição em nosso panorama cinematográfico.”

Filmagem de “Juliana do Amor Perdido” (Dib, com a câmera, deitado; Sérgio, no fundo, atrás das redes)




Para o Cahiers du Cinéma, “Esse mundo é meu” foi um dos filmes mais importantes do ano. Já “A noite do espantalho”, 2º. lugar no Festival de NY, foi considerado um dos 15 melhores de 1974 nos EUA. Também “Menino da Calça Branca” e “Juliana do Amor Perdido” foram aclamados e premiados em festivais no Brasil e no exterior.

Fotogramas do curta-metragem “O menino da calça branca”

Não dá pra discordar do título do LP: “Um SR. Talento”.

______________________
[ZÉ PEDRO ANTUNES, professor de língua e literatura alemã na UNESP/Araraquara, é tradutor, animador cultural e colunista do jornal Tribuna Impressa de Araraquara (coluna Oxouzine, às quartas-feiras). Aos 27 de abril de 2011, mediou, no SESC/ S. Carlos, o evento “ACHADOS E PERDIDOS”, criação e coordenação de CHICO GALVÃO, que teve SÉRGIO RICARDO como primeiro convidado]


←anterior    home    próximo→


quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Dublagem? Sei lá!

12 de agosto de 2015
por José Pedro Antunes

Sob o verbete “Dublagem” (Painel do Leitor, Folha de São Paulo, 10/08), uma leitora tecia comentário sobre a matéria “6 em 10 brasileiros preferem dublagem” (Ilustrada, 08/08). “A preferência por filmes dublados é só mais uma evidência da dificuldade do brasileiro com a leitura”, ela dizia, fazendo-me recordar uma fala do cineasta Anselmo Duarte em evento que tive a oportunidade de mediar no SESC/Araraquara: “Brasileiro não sabe ver filmes; brasileiro sabe ler legendas.”

Mas a palavra ‘leitura’ se aplica também às imagens. A partir do final dos anos 1960, quando cheguei à Universidade, virou moda a “leitura” de tudo e mais um pouco. No geral, consistia em projetar sobre artefatos não verbais (pintura, arquitetura, fotografia, cinema, tevê, moda etc.) as ferramentas da Linguística, portanto, aquelas com que se fazia a leitura do que é feito só com as palavras. Um problemaço. A essa vertente se deu o nome de Estruturalismo, que, diga-se, ainda teima em fazer a cabeça daqueles que, engenhocas eletrônicas em punho, aos bandos hoje se aventuram pelo mundo das letras. Sem o letramento, claro.

Cabe perguntar se, de fato, sabem ler as imagens. Ou se fazem sobre elas a projeção estruturalista acima referida. Ou talvez nem isso. Alguém já chegou a levantar uma hipótese: a inaptidão para a leitura (ampla, geral e irrestrita) estaria a promover o caos até mesmo no trânsito de veículos. As pessoas já não conseguem ler os sinais, não os entendem. Ou carecem de concentração para proceder à leitura e perceber os entornos. E, sabemos, o mesmo vale para o trânsito de pedestres. Impossibilidade sintática. Trombamo-nos.

Prosseguindo em seu desabafo, a leitora sapeca: “Dublagem é artificial, às vezes desconectada da cena, horrível!” Nada científica, não é mesmo? Fala da dublagem atualmente feita no país. Aventa um problema técnico para o qual se poderá encontrar solução técnica à medida que a dublagem se impuser como norma. E a leitora parece pressupor que a legendagem tem feito por merecer a nossa inteira confiança.

Ao dizer que a dublagem “impede a pessoa fluente na língua original de perceber incoerências na versão para o português”, ela dificilmente escapará à pecha de elitista. Quantos afinal podem se dar ao luxo? Sei que, com dublagem e tudo, o meu amigo Josaphat, cantor da noite aqui em Araraquara, chegou a montar um número impagável. Alguém pergunta, ele contava: “Por que você está tão gay?”, quando na verdade se trata da felicidade que o interlocutor, no caso, deixa transparecer.

E a leitora radicaliza: “Se for condenada a ver filmes dublados, deixo de ir ao cinema.” Pois eu já deixei de ir por razões outras. Primeiro que não consigo me concentrar se houver gente telefonando, conversando, mastigando etc. Depois, ver os filmes que os cinemas atualmente estão a exibir, digamos que a minha religião não me permite. Além do mais, não me agrada participar de unanimidades tão deslavadas. Não pode ser que todo mundo queira ver só o que todo mundo quer ver. Eu, hein!

Mas não deixo de ponderar comigo mesmo que a necessidade da legenda talvez se deva à força do hábito. Quando vejo filmes brasileiros, por exemplo, apelo para uma das legendas disponíveis, o mais das vezes inglês ou espanhol, visando a evitar o desconforto auditivo e cognitivo que na certa virá. Outro dia tentei ver, na tevê, “Os Cafajestes” do Ruy Guerra. Sim, trabalho de luto pelo desaparecimento de Norma Bengell, primeiro nu frontal do cinema brasileiro. Sem opção de legenda, tive de me haver só com as imagens, belíssimas em todo caso, sem conseguir adivinhar palavra do que diziam os protagonistas.


Nos meus seis anos de Alemanha, passei a achar perfeitamente normal e aceitável que os filmes fossem todos dublados. E nunca ouvi ninguém reclamar, colocar em questão, botar reparo. Em Munique, só um cinema exibia os filmes no original. Nele era possível ouvir, por exemplo, a indublável voz do Woody Allen, que em qualquer outro idioma, convenhamos, jamais teria a mesma graça. E aqui começo a dar razão à leitora que abomina a dublagem? Sei lá! 




sábado, 1 de agosto de 2015

O fim de uma era

27 de julho de 2015
por José Pedro Antunes


Na tradução que nos chega – e a Folha de São Paulo não dá créditos ao tradutor –, até que não soa mal a solução encontrada para o título: “O dia em que o sistema solar acabou”. No original, publicado no The New York Times pelo físico e jornalista Americano Dennis Overbye, se lê: “Reaching Pluto, and the End of an Era of Planetary Exploration.”

O autor começa por relembrar sua infância. Antes de sonhar outros sonhos impossíveis, quis ser caubói, cavalgar pelos morros do Oeste, imaginando atrás de cada morro outros tantos morros carregados de mistérios. Ao longo da vida, ele prossegue, “os morros que nos atraíram foram os outros mundos. Nossos cavalos são robôs com nomes como Mariner, Viking, Voyager.”

E nisso já nos enredamos em aventuras das quais ele se diz caroneiro: “sondas como a Dawn, agora a orbitar o planeta-anão Ceres, e a Rosetta, a orbitar o cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko”. Num texto que começa fazendo referência aos faroestes das matinês da infância, o cinema comparece ainda nas palavras de Alan Stern, chefe da missão que acaba de alcançar Plutão, pondo fim a uma era da exploração planetária: “[foi] a última sessão de cinema”. Já as naves “seguirão para o elenco de coadjuvantes do sistema solar que, como em muitos filmes bem bolados, podem revelar-se ótimos personagens”.

Chegamos então à metade do texto. E peço que o leitor me siga na tentativa de entender o parágrafo que diz: “É difícil escrever estas palavras. Como serão entendidas daqui ‘a’ 50 anos?” Até aqui, tudo bem. Só fiz acrescentar esse ‘a’, que até o corretor do Word, acertadamente, estava a exigir. Mas vamos em frente: “Eu nunca sonhei, quando astronautas deixaram a Lua em 1972, que poderia chegar um dia em que ninguém vivo tivesse pisado no satélite natural. Pode acontecer. Não é de doer o coração?” Imagino que também o leitor terá ficado confuso.

Comungará o autor da teoria conspiratória de que a conquista da lua não passou de uma armação hollywoodiana? (Recentemente, vi um documentário que faz de “O Iluminado” o mea culpa de Stanley Kubrick por ter participado do embuste.) Seria, pois, “de doer o coração”, se finalmente fosse desmascarada a farsa com a qual os americanos derrotaram os russos naquele que era, então, o ponto de chegada da corrida espacial, digo, da Guerra Fria? Farsa que, diga-se, acompanhamos todos com o terço na mão, para não dizer outra coisa, temendo que lá pudesse estar São Jorge, lança em riste, ou algumas verdolengas criaturas, antenas empinadas, com caras de poucos amigos.

Tratei de ir à fonte: “I never dreamed, when Apollo astronauts left the moon in 1972, that there might come a day when there was nobody still alive who had been to the moon. But now it seems that could come to pass.” Para chegar ao seguinte resultado: “Eu nunca sonhei, quando os astronautas da Apollo deixaram a lua em 1972, que pudesse chegar o dia em que ninguém mais que tenha ido à lua ainda estivesse vivo. Mas agora parece que poderia vir a acontecer.”

Portanto, o articulista lamenta que os vôos tripulados possam ter entrado, mais do que para a história, para o domínio da lenda – e do cinema. Hoje são robôs a percorrer o espaço, tendo chegado, enfim, ao limite do sistema solar. Nas palavras de Dennis Overbye: “O estoque de planetas maiores – Plutão entre eles ou não – acabou. A fase de fugir do berço e olhar ao redor terminou.”

E ainda cabe colocar em dúvida a momentosa solução encontrada para o título na publicação brasileira. Carece de lógica dizer que, com a chegada de um robô a seus confins, o sistema solar tenha acabado. Ou estaríamos diante de um ato falho? Expressão da ideologia da terra arrasada, que parece nortear a maior parte das intervenções do ser humano neste grão de areia cósmica sobre o qual se dá sua precária existência?

imagem: Elwood Smith