domingo, 6 de dezembro de 2015

Enrique Vila-Matas: “Ler é a melhor forma que temos para ser plenamente humanos”

02 de dezembro de 2015

Em Marienbad eléctrico (Caja Negra), o escritor retoma e explica seu diálogo criativo de vários anos com a artista francesa Dominique González-Foester.

Por Violeta Serrano (La Nacion, 23/08/2015). Tradução: Zé Pedro Antunes.

Fotos: Soledad Aznarez y Enrique Vila-Matas.

Este livro é, sob certo aspecto, um "extra" para Não procure a lógica em Kassel. De onde vem tua fascinação pela arte contemporânea e como a vincula com teu ofício?

Não sei de onde vem, sempre esteve. Apenas que ultimamente se integrou de forma muito natural em minha literatura. Estou consciente de que Marienbad eléctrico pode ser visto como uma continuação ou como um livro adjunto a Não procure a lógica em Kassel, mas não foi nem sequer minha a ideia de escrevê-lo. Foi de Dominique Bourgois, minha editora francesa, que, ao saber que o Centro Pompidou programara para este setembro uma retrospectiva de minha amiga Dominique González-Foerster, me encarregou de escrever algo sobre a relação artística entre a artista e eu, que falasse sobre a curiosa energia criativa que nossa amizade havia gerado. Para mim foi importante conhecer González-Foerster, entre outras coisas porque entrei em contato com una geração de artistas franceses que se negaram a fecharem-se em si mesmos e situaram seus trabalhos em uma interseção de disciplinas e de intercâmbio de ideias com as demais artes. E eu precisava sair do excessivo confinamento de minha escritura de gabinete.

Por que decidiu fazer um aceno à relação entre Watson e Holmes para descrever os intercâmbios entre vocês?

É que a Dominique lhe intrigava meu trabalho de escritor, saber como operava para me complicar tanto a vida na hora de colocar de pé um romance. E, no meu caso, me atraía muito saber como ela fazia para manejar em seu trabalho tantas disciplinas artísticas ao mesmo tempo. Assim começou uma história de curiosidade mútua por nossas condutas artísticas e materiais de trabalho, uma história que acabou me recordando o modelo de relação Holmes & Watson, pois durante longo tempo, tanto ela como eu nos dedicamos a investigar dissimuladamente o outro, a detectar em conversas aparentemente acidentais o gérmen de novos projetos e a suspeitar inclusive que os diálogos mais simples ocultavam mensagens chaves. Qualquer e-mail que trocávamos (ou qualquer frase dita no café Bonaparte de Paris, que é onde mais nos vemos) pode acabar se convertendo em uma mensagem de infinitas consequências. Houve dias em que eu, ali no Bonaparte – creio que ela me fez ver isso – lembrava o primeiro Watson, o "intrometido impertinente" de Estudo em vermelho, o mesmo que no 221B da Baker Street se dedica a espiar seu companheiro de andar, Holmes, e vai se convertendo em assombrada testemunha de sua impressionante destreza para informar-se sobre quanto o rodeia.


Falemos de outra referência que está no livro: o filme O ano passado em Marienbad de Resnais, com roteiro de Robbe-Grillet e inspirada, a seu modo, no romance do argentino Bioy Casares, A invenção de Morel. Por que tomou esta referência?

Em meu romance Dublinesca adiantei o que acreditava possível ver numa instalação sobre o fim do mundo que DGF preparava para a Tate Modern e descrevi uma orquestra que nela atuaria, e que na realidade não foi senão fruto de um mal-entendido e de minha própria precipitada imaginação: "E, tocando uma música indefinida entre as liteiras metálicas, haverá alguns músicos que serão como um eco da última orquestra do Titanic e que mesclarão instrumentos de corda com guitarras elétricas. Talvez o que interpretem seja o desfigurado jazz do futuro, talvez um estilo híbrido que algum dia haverá de se chamar Marienbad eléctrico".


Daí vem o título deste novo livro de estilo híbrido. Quando o estava escrevendo descobri que o filme de era baseado em A invenção de Morel e então me pareceu ver que minha relação com Dominique recordava a do homem e a mulher do romance de Bioy e do filme de Resnais. É um tipo de relação que organiza uma estranha trama que o roteirista Robbe-Grillet assim descreveu: "A história de una comunicação e descomunicação entre dois seres, um homem e uma mulher, um dos quais propõe e o outro resiste, e que acabam por encontrar-se reunidos, como se desde sempre o tivessem estado". Por certo, a ideia do hotel vazio nesse filme, a ideia do hotel completamente deserto, por exemplo, Kubrick a transpôs para O Iluminado. E, por outro lado, a leve trama do filme de Resnais – a mesma leve trama de Marienbad eléctrico – foi reproduzida, com luminosas variantes, por Marguerite Duras em India Song. E mais: a primeira sequência de Moscou contra 007, o filme de Terence Young com James Bond, era uma piscada para filme de Resnais?


Deduz-se que as aproximações que faz no livro, de como compreende a obra artística, que um de seus pilares deve ser, de algum modo, a simultaneidade: estar fora e dentro a uma só vez, como no quadro de Matisse Ventana de Collioure ao qual várias vezes alude no livro. Em que sentido você e Dominique trabalham para conseguir essa simultaneidade?

Não sei, por sorte é ainda um mistério. Esse quadro de Matisse tem importância no livro, porque descubro nele um efeito que costumo buscar em meus ensaios narrativos ou em minhas narrativas ensaísticas. "Se pude reunir em minha pintura tanto o exterior (o mar) como o interior, é porque a atmosfera da paisagem e a de meu quarto é a mesma", disse Matisse de sua peça de Colliure. Trata-se de uma definição que se encaixa, à perfeição, a alguns dos trabalhos de Dominique, e também a alguns dos meus onde a separação entre interior e exterior – entre meu gabinete (minha mente) e a rua (o exterior), para tomar um exemplo qualquer – é quase imperceptível.

No livro também fala de sua relação de amizade e criação com o escritor Eduardo Lago, que acaba de publicar na Argentina Siempre supe que volvería a verte, Aurora Lee, um livro que nasce precisamente de uma conversa entre os tres: você, ele e Dominique González-Foerster. Diria que eles dois são os autores aos quais se sente mais próximo neste período de sua escritura?

É muito difícil, numa certa idade, que haja muitas amizades novas, no sentido de que os amigos verdadeiros procedem sempre das etapas mais juvenis, quando há menos interesses cruzados nas relações entre as pessoas. Sem dúvida, me encontrei com seres como Eduardo e Dominique, com os quais tive uma comunicação muito criativa e se converteram na última década em duas relações fundamentais.

Qual a função das fotografias inseridas em diferentes passagens do livro?

Pedi a González-Foerster que as escolhesse e que estivessem relacionadas com o trabalho dela; afinal Dominique Bourgois me encarregara de fazer um livro sobre a artista e sua obra. Pedi que fossem cinco imagens e pensei em colocar uma legenda extraída do texto do livro para cada uma delas. Queria que tudo, neste aspecto visual, resultasse o mais parecido possível com um dos livros mais decisivos do século passado, Nadja de André Breton, onde apareciam imagens de alguns lugares de Paris, imagens laterais ou residuais, e sem dúvida fascinantes, porque davam muita vontade de ir àquela cidade da qual o livro nos falava, mesmo que fosse só para ver se era verdade que não havia nada mais interessante em Paris do que aqueles desfocados (mágicos, dizia Breton) lugares.

Em um momento do livro, você joga com a visão de Rimbaud como a do Minotauro no quarto 19 e, ao mesmo tempo, aproveita para afirmar que sem o outro nada existe. Ao final do livro, volta a esse quarto, ao que Dominique tem pensado fazer com ele em sua mostra que se inaugura em setembro em Paris, no Beaubourg. Poderia explicar por que a escolha destes personagens e desta estrutura para escrever um livro que é na verdade uma volta do parafuso sobre o acaso produtivo que funciona entre Dominique e você?

Este setembro Marienbad eléctrico surge na Argentina, França e México ao mesmo tempo. A Espanha decidiu esperar. Já não mais é uma brincadeira que eu fazia, disso me dou conta, estou a caminho de me tornar um escritor franco-argentino-mexicano. Se acabasse acontecendo, seria algo que teria uma relação muito coerente com minha obra. O livro será publicado em setembro e sua trama prossegue na própria vida, porque DGF me assegura que, em sua retrospectiva do Beaubourg, estará esse quarto único de que falo no livro e do qual me garante que só eu terei a chave. Veremos. Watson permanece à espera.

Você diz: "Só vivemos realmente à medida que lemos nossa história, transcendendo-a. Por que só a literatura é verdadeiramente transcendente". Concebe a literatura como uma necessidade, não somente pessoal, mas humana?

Alguns pensam que os livros são entretenimento, mas são muito mais. Ler é a melhor forma que a vida nos oferece para que possamos ser plenamente humanos.


A arte é uma luz desconhecida, um clarão em meio à tormenta que não compreendemos, mas nos faz tremer, e do qual necessitamos para saber que estamos vivos? Isso é Marienbad eléctrico, uma reflexão sobre esse momento de revelação que é a arte?

A arte é o que acontece, o que esta ocorrendo neste momento. Depende de nós, sempre. E a arte, evidentemente, é epifania, emoção do momento, saber olhar para o tempo através das gotas de chuva, ou através de um tecido desgastado que deixa ver de vez em quando o leste do éden.

Dominique González-Foerster



domingo, 11 de outubro de 2015

Fassbinder não era um santo

1 de novembro de 2012 

Ramon Schack (stern.de) entrevista Harry Baer, ator e produtor, amigo e alter ego do cineasta. Tradução: Zé Pedro Antunes.

[Há 30 anos, vítima precoce de uma overdose para muitos nunca suficientemente esclarecida, morria em Munique o cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder. Para o entrevistado, a hipótese do suicídio fica descartada, pois já estava em produção um filme que teria o nome de uma canção de Joachim Wit: “Ich bin das Glück dieser Erde” (Eu sou a felicidade desta terra). E Fassbinder o orientava no sentido de permanecer atento a tudo que se relacionava com os anos 60, sobretudo as canções, pois daí eles poderiam tirar vários outros argumentos.]



Que lembranças você guarda do dia 10 de junho de 1982? Como soube que Fassbinder havia morrido?

Algumas horas antes nos falávamos ao telefone. Sobre um bar que eu acabava de visitar e me pareceu apropriado para uma locação. Ele, bastante interessado. Algumas horas depois, estava morto.

Você era do círculo mais íntimo. Foi totalmente inesperado?

Sim, me pegou desprevenido, como uma marretada. Era o abismo, perdera um amigo muito bom, não via qualquer perspectiva profissional e comecei a beber desinibidamente.

Mas nesse mesmo ano você lançava uma biografia...

Pois o livro me salvou da derrocada. Escrevendo, consegui me livrar do pântano. Graças à pressão da editora, consegui terminá-lo. Me botaram o cano do revolver no peito. Era pra ser lançado a tempo na Feira do Livro. Insisto: eu não vivia um bom momento.

Havia indícios de uma decadência física do cineasta?

Ao vê-lo, hoje, em aparições na tevê ou em cenas de que me recordo, dá para reconhecer sinais de alerta. O consumo desbragado de drogas era mais do que visível. Talvez me faltasse distância. Trabalhávamos bastante juntos, éramos ambos workaholics. Tão ligados, não dava para perceber os indícios. Eu, talvez, demasiado ocupado comigo mesmo. Mas não pressentia que a morte pudesse levá-lo tão cedo.

Com ela, fortaleceu-se a ligação entre os companheiros de estrada e amigos de Fassbinder?

Ao contrário. Gravitávamos em torno dele. Tudo se desgovernou. [...]. Algo que já começara, aliás, um tempo antes. Progressivamente as pessoas iam desaparecendo daquele círculo, ficavam de mal com ele, para depois retomar o contato.

Quando e onde conheceu Fassbinder?

Foi em 1968. Um colega de escola, o Rudolf Waldemar Brem (ator), me levou para o teatro. Uma noite, na plateia, Fassbinder e Hanna Schygulla se divertiam muito com o meu desempenho. Aos poucos, fomos nos conhecendo, começava o trabalho conjunto no Action Theater [grupo teatral de Munique]. Até então eu tinha outros planos para o meu futuro. Como a maioria de nós, eu era politizado e queria ser professor. Em 1968, no início do semestre, as universidades entraram em greve. Quanto ao estudo, nada a fazer. Permaneci no teatro. E o trabalho com Fassbinder se intensificou.

O nome Fassbinder já significava algo para você?

Não, em absoluto. Pra mim, era um carinha que fumava, um dândi. Seu sucesso só começou um pouco depois, em 1969, com o filme Katzelmacher [O Machão].

Em Wildwechsel [A Encruzilhada das Bestas Humanas] você faz um rapaz de 19 que se relaciona com um garoto de 13. Na época, um escândalo. Entre outras coisas, pelas cenas de nudez. Isso te trouxe dissabores ou fama?

O filme deu o que falar. Não só pela nudez. [...] Mas Fassbinder vivia sob o lema: “Falem bem ou mal, mas falem de mim”. Isso, claro, não impediu que o filme ganhasse amplo reconhecimento.

Dava pra ver teu órgão sexual e era esse o assunto.

Não só isso. Cortaram o close do meu pênis na versão para o cinema. Eu achava engraçada aquela parte do meu corpo em lilás.

Fassbinder foi por muito tempo considerado de esquerda naquela época. Em Mutter Küsters Fahrt ins Himmen [A Viagem de Mãe Küster ao Céu], porém, ele acerta contas com a esquerda chique e expõe sem perdão a vida mentirosa das pessoas desse meio. O encontro com o escritor e dramaturgo Franz Xaver Kroetz, à época membro ativo do PC alemão, terá sido uma motivação para esse filme?

Esse era, na época, um verdadeiro bolchevista de salão. Terá inspirado a muitos. Mas Fassbinder era um não-conformista e livre-pensador. Não se indispôs apenas com a esquerda chique. Nunca ofereceu imunidade artística a certos meios e grupos. Algo como o “politicamente correto” não era com ele. Tratava-se de representar o comportamento, a natureza humana. Em seus filmes, essas representações eram ambientadas nos mais diversos meios. Em Faustrecht der Freiheit [O Direito do Mais Forte], também a subcultura homossexual é levada a perder suas gorduras, o que causou muita indignação. E o filme não tinha a ver senão com exploração. Só por acaso a ação foi ambientada no meio homossexual.

Nesse filme você tem um importante papel secundário. Não era arriscado fazer papel de homossexual?

Eu não pensava em coisas desse tipo. Nós todos vivíamos e trabalhávamos, constantemente, além das representações da moral burguesa.

Como descreveria a postura política básica de Fassbinder?

Nem de direita nem de esquerda. Era um artista, e dos bons ainda por cima. Como todos os bons artistas, não importa em qual âmbito, era algo assim como um espírito livre anarquista.

Recentemente a Fundação Fassbinder voltou à pauta. Ingrid Caven, ex-mulher e companheira de muitos anos do cineasta, acusa Juliane Lorenz, que preside a Fundação, de andar falseando a história. Qual a tua posição nesse embate?

Primeiro eu vou ouvir os argumentos, depois formo uma opinião.

Na tua opinião, as acusações fazem sentido? Ingrid Caven não é, aliás, a única pessoa a se manifestar dessa forma.

A Fundação Fassbinder é o trabalho da vida da senhora Lorenz. Ela investiu décadas em sua construção. Isso tem que ser respeitado. Pode ser que, nesse meio tempo, distância e objetividade tenham lhe faltado. Afirmar que Fassbinder não era homossexual e dependente de drogas não corresponde à verdade. Fassbinder não era um santo. Era um ser humano com todas as suas forças e fraquezas. Eu, pessoalmente, não entro nessa de fazer dele, a posteriori, um ícone. Suas rupturas e contradições eram parte de sua personalidade, provavelmente também a fonte de sua inacreditável vitalidade, de sua energia criativa. Suponho que isso agora se deva à influência da mãe de Fassbinder, que talvez tivesse interesse em relegar ao esquecimento alguns dos atributos do filho que não eram do agrado dela.

O que você deve a Fassbinder?

Do ponto de vista profissional, tudo. Com ele, eu aprendi a carpintaria do cinema. Sou-lhe muito grato por esses 14 anos de vida a seu lado. Foram também os mais produtivos e instigantes de minha vida, ainda que nem sempre os mais fáceis. Ele continua a ser até hoje o maior cineasta alemão. Como pessoa, foi um amigo muito querido. Um amigo de quem eu continuo a sentir falta. Se estivesse vivo, eu estaria fazendo filmes com ele. Pena que – e isso há tanto tempo já – tenha ido tão cedo.
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Notas do Tradutor:

Na edição brasileira, a biografia escrita por Harry Baer chama-se: Posso dormir quando estiver morto. A vida sufocante de Fassbinder (Brasiliense, 1985).

Tanto Fassbinder como Franz Xaver Kroetz escreviam peças populares bávaras na esteira de Marie Luise Fleisser, que os considerava seus filhos. Com Kroetz, Fassbinder escreveu, para um filme de tevê: Acht Stunden sind kein Tag [Oito horas não são um dia]. Dela, com o “antiteater” de Munique, Fassbinder encenou e depois filmou a peça Pioniere in Ingolstadt [Pioneiros em Ingolstadt], que inclui entre seus 10 livros preferidos. A ela o cineasta dedica Faustrecht der Freiheit [O Direito do Mais Forte].

Ingrid Caven foi casada com Fassbinder, tendo atuado em vários de seus filmes. É uma das mais reverenciadas cantoras do cabaré alemão.

Juliane Lorenz fez a montagem de parte considerável dos filmes do cineasta.

Liselotte Eder (ou Lilo Pempeit), mãe de Fassbinder, atua em 20 de seus filmes.





domingo, 20 de setembro de 2015

Sonhos de Mestre

31 de julho de 2012

Katja Nicodemus, conhecida por seu trabalho como crítica de cinema, atua tanto na imprensa escrita como nos meios audiovisuais, tendo já entrevistado Woody Allen em inúmeras ocasiões. Na mais recente delas, realizada para o Die Zeit Online, o tema foi a influência da obra do diretor sueco Ingmar Bergman sobre a visão de mundo e de cinema do cineasta americano. Tradução.: Zé Pedro Antunes.



Ao final de Manhattan, o herói, que você mesmo representa, esboça uma pequena lista das coisas que fazem com que a vida seja bela apesar de tudo. Depois de mencionar Groucho Marx, a segunda frase da Sinfonia 41 C (Júpiter), de Mozart, Marlon Brando, as maçãs e peras de Cézanne, ele exclama: “Ah, e filmes suecos, naturalmente!”

Naturalmente! O que, para mim, era o mesmo que  Bergman – ele era, por assim dizer, o cinema sueco.

Qual foi, para você, o primeiro Bergman?

Noites de Circo, de 1953. Trata de um diretor de circo que, tendo abandonado a mulher e os filhos, depois de muitos anos pensa em voltar. Ainda me lembro, exatamente, do estado em que saí do cinema: abalado e o mais profundamente impressionado.

O que mais admira em Bergman?

É ele conseguir direcionar a câmera para um rosto e deixá-la rodar. Deixava que ela seguisse à solta, alcançando assim um efeito enorme. Nada a ver com o que se aprende nas escolas de cinema. E não importa de quais assuntos ele tenha tratado: todos os temas por ele abordados parecem me atingir diretamente. O que eu mais admiro é sua arte de dramatizar tais temas e narrá-los de modo absolutamente entretenedor.

Será “entretenedor” a palavra correta? 

Em todo e qualquer caso. Para entreter, um filme não tem que ser divertido. Os filmes de Bergman são o oposto cabal do tédio. Portanto, entretenedores. No melhor sentido da palavra.

Qual é o teu Bergman preferido?

São três filmes que nunca mais me abandonaram: Morangos Silvestres, O Rosto e O Sétimo Selo, sendo este último o meu Bergman preferido. Sempre revi todos os filmes dele, e há naturalmente dúzias de cenas grandiosas. Mas a mais impressionante é a cena final de O Sétimo Selo: a dança da morte sobre a colina no horizonte. Ao ver Morangos Silvestres, O Sétimo Selo e O Rosto, a gente compreende que nunca mais haverá, na história do cinema, uma tal junção de intelectualidade superior e maestria técnica.

Chegou a estar com Bergman?

Uma vez, em Nova Iorque, num encontro acertado pela Liv Ullmann. Jantamos na suíte dele. E ele não era o gênio sombrio que eu esperava. Era uma pessoa bem normal, que falava de mulheres e de resultados esportivos. Bem depois, ele chegou a me ligar da ilha em que decidiu viver isolado. E me contava do que tinha sonhado. De sonhos que tinham a ver com o medo de falhar no set de filmagem: algo assim como chegar ao set e, de repente, não saber mais onde posicionar a câmera. Era isso que ele sonhava depois de quinze a vinte obras-primas!

Em Stardust Memories, há uma cena que ficou famosa como perfect moment: nela se vê Charlotte Rampling, num dia de verão, a folhear os jornais, com a música de Louis Armstrong a ocupar o espaço sonoro. Haveria, para você, um perfect moment em Ingmar Bergman?

O fato é que esses momentos, às vezes, são da maior banalidade. Eles se tornam perfeitos apenas porque te ocorrem num certo instante. Como certa vez, ao sair de casa, eu me recordava de um dia em que queria ir ao cinema, e de repente vi esvoaçarem sobre Nova Iorque os primeiros flocos de neve daquele inverno. Em Bergman, há um momento em que alguém simplesmente se acha por ali sentado, comendo morangos silvestres, enquanto uma criança brinca. É isso que eles são, esses momentos: epifanias. Momentos que são ao mesmo tempo tão comuns e tão extraordinários. 


foto: Woody Allen e Mariel Hemingway em Manhattan (1979).




quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Cinema Mudo: trilhas sonoras contemporâneas

9 de abril de 2013
por José Pedro Antunes

“Com trilha sonora contemporânea, cinema mudo tem cada vez mais espectadores”, dizia a manchete da Gazeta Russa em 25/01/2012. Na foto, a silhueta de um violonista se destaca à frente da tela onde se projeta o filme Luzes da Cidade, de 1931. O cinema é um dos mais antigos de Moscou, o “Khudojestveni”. O violonista é o jovem artista russo Arseni Trofim, a executar a trilha que compôs para o grande clássico de Charles Chaplin.


É um trabalho que ele e outros artistas desenvolvem em vários pontos do país. Para que os resultados possam ser compartilhados, músicos de Kemerovo e Tomsk criaram um festival batizado como “Tapeur” (do francês, em desuso, para se referir a quem se dedica à sonorização de um filme usando partituras já existentes). Com o objetivo de atrair o grande público para os filmes clássicos e experimentais do cinema mudo, Arseni Trofim criou o projeto “Sala Tapeur Contemporânea”.

Entre nós, alguns músicos se dedicam a criações semelhantes. O Sesc/Araraquara já promoveu uma oficina ministrada pelo compositor Lívio Tragtenberg, que resultou numa apresentação de Limite, de Mário Peixoto – trilha sonora executada com a participação de músicos locais. Um outro evento trouxe a banda “Frame Circus”, formada por Tatá Aeroplano (Cérebro Eletrônico, Jumbo Elektro), pelo compositor de trilhas sonoras Paulo Beto e por Maurício Fleury (Multiplex e Montage).


No Sesc/S. Carlos, quinta-feira última, para acompanhar Mistérios de uma Barbearia (Karl Valentin, 1922), o evento “Brecht em Cena” convidou o pianista Tony Berchmanns. As técnicas, e mesmo alguns macetes surrados, ele comentava depois da exibição, são em grande parte devedores de Richard Wagner, cujo método, pioneiro, se adequa às necessidades dos “neotapeurs”. Tivesse alcançado o cinema sonoro, o compositor certamente teria tido êxito como criador de trilhas para o cinema.



Berchmanns improvisa grande parte do que executa. Houvesse uma segunda sessão, o resultado seria outro. Mas próximo. Não há como fugir a convenções de eficácia comprovada. Como a elementar diferença entre acordes maiores (mais alegres, festivos), e acordes menores (tristes, depressivos). Ou o uso da dissonância para suscitar inquietações, gerar expectativas. E, para marcar os saltos da narrativa, acordes instigantes, bruscamente martelados no piano.

Mesmo tendo visto o filme antes, o pianista opera como um tradutor, ao perseguir, com sonoridades, ideias e sentimentos implícitos nas imagens. Mudo ou sonoro, todo filme pressupõe uma partitura. Muitos dos elementos da composição musical são os mesmos que norteiam a composição fílmica.

No conceito de “leitmotiv” (motivo condutor), que vem justamente de Wagner, temos um substantivo derivado do verbo latino que nos deu “mover” (filme, em inglês, se diz “movie”), acoplado ao radical do verbo alemão “leiten”, que significa “conduzir” (também usado no âmbito da música) ou “dirigir” (de amplo uso tanto na música como no cinema).

Já a caminho do cinema sonoro, para se distanciar da literatura e do teatro, alguns cineastas buscaram a proximidade da música. Em 1927, o alemão Walter Ruttmann rodou Berlim: Sinfonia da Metrópole – um dia na vida da cidade, com o amanhecer, o dia pleno, o anoitecer e a vida noturna sendo os movimentos de uma composição de Edmund Meisel.




Foi a matriz de um gênero, o “filme-sinfonia”, que gerou sucedâneos. Em 1929, surgia São Paulo: Sinfonia da Metrópole, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, dois jovens de origem húngara, que na época eram donos dos melhores laboratórios do país. Mostravam uma cidade que deixava de ser mero entreposto comercial para se tornar o maior centro financeiro do país. Em tempo: o filme alemão foi lançado em DVD pela Continental, enquanto a película brasileira, além de se oferecer na net como DVD “raro”, também está disponível no YouTube.





sábado, 29 de agosto de 2015

Um SR. Talento

24 de agosto de 2015
por José Pedro Antunes




Sérgio Ricardo? Ah, esse quebrou o violão naquela noite em 1967. Só agora, com o filme de Ricardo Calil e Renato Terra, ele próprio veio a saber que armaram contra ele. Para fazer de um festival de música popular um programa de TV, havia que distribuir os papéis: ele seria o vilão.





Mas Sérgio não era nenhum novato, como Edu Lobo, Chico, Caetano, Gil, os Mutantes. “Beto Bom de Bola” – ou “de vaia”, como ele mesmo ironizava naquela noite infeliz – não estará, talvez, entre as suas melhores canções.

Querem uma obra-prima? Postada no youtube, é dele uma animação digital para seu maior hit: “Zelão”. Outras? No site que reúne tudo sobre  sua trajetória e obra, incluindo a discografia completa, para ouvir e baixar.

Na última quarta, no Sesc/SC, tocou-me mediar o bate-papo com esse que, entre tantas coisas, compôs a trilha de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Glauber lhe arrancou, ele afirma, o de que nem ele próprio se sabia capaz: a voz de cantador cego, nordestino, que pontua as aparições de Antonio das Mortes.



Paulista de Marília, nascido João Lutfi, o nome artístico o acompanharia como pianista na noite, ator de novelas e filmes, cantor de sambas românticos, compositor e intérprete de bossa-nova. Fez parte do elenco que, em noite histórica no Carnegie Hall, lançou o gênero para o mundo.

Dentre seus filmes, destaquem-se “Este mundo é meu”, curta premiado nos EUA, e “A noite do espantalho”. Escrito o roteiro, conta, eis que lhe surge à porta “o pessoal de Pernambuco”, aliás, dois cabeludos: Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Em Alceu, seu tanto alucinado, cabeleira farta, ele viu que ganhara o “espantalho” para o filme.

 


No cinema, projetou ainda o irmão, Dib Lutfi, que se tornaria o mais criativo e requisitado câmera do cinema novo. E, na música, duas parcerias de futuro: João Bosco & Aldir Blanc, Fagner & Belchior. Mas essa já é uma outra história, a do “disco de bolso”, uma sua idéia, pioneira, que o Pasquim comprou e lançou nas bancas do país. 

Talvez o leitor não consiga imaginar o espanto que foi encontrar nas bancas, no início dos anos 1970, encartado num jornal chamado O Pasquim, o compacto duplo que trazia: no lado A, Tom Jobim, com a inédita “Águas de Março”; e no lado B, “um tal de João Bosco”, com “Agnus Sei”, em parceria com Aldir Blanc.



Começava a breve história do “Disco de Bolso”, idealizado por Sérgio Ricardo. A 2ª. edição trazia Caetano Veloso, que retornava do exílio londrino, com “A volta da Asa Branca”; e um cearense, de nome Fagner, com “Mucuripe”, em parceria com Belchior.

Falido O Pasquim, ficamos sem os seguintes, que trariam, respectivamente, Egberto Gismonti e Alceu Valença, Paulinho da Viola e Luis Melodia.

Para falar da importância de Sérgio Ricardo para a geração que se projetou naquela noite em 1967, repasso ao leitor um pouco do que ele contou à platéia do evento “Achados e Perdidos”, no Sesc/S. Carlos.



Era comum novos compositores e intérpretes virem-lhe bater à porta, meados dos anos 1960, quando ninguém imaginava o que estava por vir. Um dia, um garoto chamado Chico queria lhe mostrar “um sambinha”, acompanhado por um amigo. O sambinha: “Sonho de um carnaval”. O amigo: Toquinho. Sem crer no que ouvira, Sérgio perguntou se havia mais. E havia: “Pedro Pedreiro”. O resto o leitor sabe – e certamente cante. Emoção maior foi, décadas depois, ouvir da boca do próprio Chico, que este, quando sonhava ser cantor de rádio, queria ser Sérgio Ricardo.

O “Achados e Perdidos” é criação do nosso conhecido e querido Chico Galvão – animadora presença no Sesc/Araraquara em seus primórdios.



O convidado, no caso, recebe em casa uma mala, a ser preenchida com objetos reveladores de sua trajetória e, depois, desfeita diante do público.

No encerramento do bate-papo com o SR. Talento, a produção me soprou uma última pergunta: “Sérgio Ricardo, o que você achou e o que você perdeu na sua vida?” Do Carnegie Hall ao Vidigal, onde hoje vive, é uma longa história. 

Do Morro do Vidigal, onde vive há alguns anos, Sérgio Ricardo só sairia mesmo para voltar a viver em sua terra natal. É no “Buracão”, reserva de mata atlântica, lugar paradisíaco nos arredores de Marília, que ele pretende rodar um dos dois filmes em preparação. Ali, viveria feliz, não fossem as premências da vida material, algo inacreditável, diga-se, para um realizador do seu porte e em tantas frentes. Em São Carlos, o compositor antecipava uma bomba prestes a explodir na imprensa: o escandaloso desvio de direitos autorais. Um certo Coitinho, no Rio Grande do Sul, estaria a receber pela trilha do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.



No Vidigal, não faz muito tempo, Sérgio liderou a resistência da população contra a remoção de uma parte do morro, para dar lugar a um elevado. Ou seja, continua engajado como sempre foi, pronto a abraçar as causas de uma população, a brasileira, que é o que ele diz ter achado em sua vida. Poderia ter vivido e produzido em vários outros países, mas não trocaria, por nada, este povo tão especial que é o brasileiro, capaz de um dia acordar, reagir, fazer sua revolução por meios inéditos, sem violência.

Chegou a filmar no Líbano, na localidade de onde vieram os seus pais. Teve financiamento do governo libanês, mas o resultado, considerado subversivo por incitar a população a deixar o país – assim entenderam as autoridades –, acabou apreendido, ficou por lá, ninguém viu, desapareceu. Aqui também enfrentou problemas por ter a mania de dizer o que pensa, sofreu boicotes, conheceu um certo ostracismo. Por pouco, não desaparece do cenário cultural.

 


O título desta série é o mesmo de um seu LP, lançado pela Elenco em plena bossa nova. A gravadora, de par com o extremo bom gosto musical, primava pelas capas inovadoramente conceituais e de um apuro gráfico até então inédito entre nós – à altura daquele momento tão especial para a cultura brasileira. A conferir no site do compositor. Em construção, mas já fartamente abastecido. 

Artista multimídia que é, desde sempre, como concilia tão variados projetos? Sérgio Ricardo é do tipo que faz uma coisa de cada vez. Quando pinta, por exemplo, esquece que é músico ou cineasta. Também nunca se ligou no sucesso. As coisas acontecem. Com Sérgio Mendes, poucas afinidades. Sempre preferiu o outro bossa-novista que fez carreira internacional: Eumir Deodato. O Tropicalismo? Claro, foi uma rendição ao mercado. Mas não esquecer o imenso talento dos tropicalistas. De Caetano Veloso, “um gênio”, ele cantarola acordes de “uma obra-prima”: “No dia em que eu vim me embora”.



Geraldo Vandré? Chegaram a fazer shows e a gravar canções um do outro. Dizem que ainda continua compondo. Cadê? Suplantar Jobim e Chico diante de um Maracanãzinho lotado, e só com o violão, não é pra qualquer um. Um grande artista.



Melhor canção da MPB? “Disparada”. Variações melódicas e harmônicas são páreo para grandes compositores eruditos. Theo de Barros, o autor, arranjou algumas faixas do seu LP “Arrebentação” (1971). Disco mais importante? “Sérgio Ricardo” (Continental, 1967). Na capa, a foto de sua aparição no fatídico Festival da Record. Os censores não gostaram da faixa branca a encobrir-lhe a boca, nem do título de uma das canções: “Calabouço”.



Quanto ao cineasta, diz Glauber Rocha, em 1964, ano de lançamento de “Esse mundo é meu”: “É um legítimo passaporte de cineasta para o músico consagrado que é Sérgio Ricardo. Moderno, vivo, alegre, carregado de poesia e esperança, o filme demonstra, mais uma vez, que o cinema novo conquista dia a dia sua posição em nosso panorama cinematográfico.”

Filmagem de “Juliana do Amor Perdido” (Dib, com a câmera, deitado; Sérgio, no fundo, atrás das redes)




Para o Cahiers du Cinéma, “Esse mundo é meu” foi um dos filmes mais importantes do ano. Já “A noite do espantalho”, 2º. lugar no Festival de NY, foi considerado um dos 15 melhores de 1974 nos EUA. Também “Menino da Calça Branca” e “Juliana do Amor Perdido” foram aclamados e premiados em festivais no Brasil e no exterior.

Fotogramas do curta-metragem “O menino da calça branca”

Não dá pra discordar do título do LP: “Um SR. Talento”.

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[ZÉ PEDRO ANTUNES, professor de língua e literatura alemã na UNESP/Araraquara, é tradutor, animador cultural e colunista do jornal Tribuna Impressa de Araraquara (coluna Oxouzine, às quartas-feiras). Aos 27 de abril de 2011, mediou, no SESC/ S. Carlos, o evento “ACHADOS E PERDIDOS”, criação e coordenação de CHICO GALVÃO, que teve SÉRGIO RICARDO como primeiro convidado]


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quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Dublagem? Sei lá!

12 de agosto de 2015
por José Pedro Antunes

Sob o verbete “Dublagem” (Painel do Leitor, Folha de São Paulo, 10/08), uma leitora tecia comentário sobre a matéria “6 em 10 brasileiros preferem dublagem” (Ilustrada, 08/08). “A preferência por filmes dublados é só mais uma evidência da dificuldade do brasileiro com a leitura”, ela dizia, fazendo-me recordar uma fala do cineasta Anselmo Duarte em evento que tive a oportunidade de mediar no SESC/Araraquara: “Brasileiro não sabe ver filmes; brasileiro sabe ler legendas.”

Mas a palavra ‘leitura’ se aplica também às imagens. A partir do final dos anos 1960, quando cheguei à Universidade, virou moda a “leitura” de tudo e mais um pouco. No geral, consistia em projetar sobre artefatos não verbais (pintura, arquitetura, fotografia, cinema, tevê, moda etc.) as ferramentas da Linguística, portanto, aquelas com que se fazia a leitura do que é feito só com as palavras. Um problemaço. A essa vertente se deu o nome de Estruturalismo, que, diga-se, ainda teima em fazer a cabeça daqueles que, engenhocas eletrônicas em punho, aos bandos hoje se aventuram pelo mundo das letras. Sem o letramento, claro.

Cabe perguntar se, de fato, sabem ler as imagens. Ou se fazem sobre elas a projeção estruturalista acima referida. Ou talvez nem isso. Alguém já chegou a levantar uma hipótese: a inaptidão para a leitura (ampla, geral e irrestrita) estaria a promover o caos até mesmo no trânsito de veículos. As pessoas já não conseguem ler os sinais, não os entendem. Ou carecem de concentração para proceder à leitura e perceber os entornos. E, sabemos, o mesmo vale para o trânsito de pedestres. Impossibilidade sintática. Trombamo-nos.

Prosseguindo em seu desabafo, a leitora sapeca: “Dublagem é artificial, às vezes desconectada da cena, horrível!” Nada científica, não é mesmo? Fala da dublagem atualmente feita no país. Aventa um problema técnico para o qual se poderá encontrar solução técnica à medida que a dublagem se impuser como norma. E a leitora parece pressupor que a legendagem tem feito por merecer a nossa inteira confiança.

Ao dizer que a dublagem “impede a pessoa fluente na língua original de perceber incoerências na versão para o português”, ela dificilmente escapará à pecha de elitista. Quantos afinal podem se dar ao luxo? Sei que, com dublagem e tudo, o meu amigo Josaphat, cantor da noite aqui em Araraquara, chegou a montar um número impagável. Alguém pergunta, ele contava: “Por que você está tão gay?”, quando na verdade se trata da felicidade que o interlocutor, no caso, deixa transparecer.

E a leitora radicaliza: “Se for condenada a ver filmes dublados, deixo de ir ao cinema.” Pois eu já deixei de ir por razões outras. Primeiro que não consigo me concentrar se houver gente telefonando, conversando, mastigando etc. Depois, ver os filmes que os cinemas atualmente estão a exibir, digamos que a minha religião não me permite. Além do mais, não me agrada participar de unanimidades tão deslavadas. Não pode ser que todo mundo queira ver só o que todo mundo quer ver. Eu, hein!

Mas não deixo de ponderar comigo mesmo que a necessidade da legenda talvez se deva à força do hábito. Quando vejo filmes brasileiros, por exemplo, apelo para uma das legendas disponíveis, o mais das vezes inglês ou espanhol, visando a evitar o desconforto auditivo e cognitivo que na certa virá. Outro dia tentei ver, na tevê, “Os Cafajestes” do Ruy Guerra. Sim, trabalho de luto pelo desaparecimento de Norma Bengell, primeiro nu frontal do cinema brasileiro. Sem opção de legenda, tive de me haver só com as imagens, belíssimas em todo caso, sem conseguir adivinhar palavra do que diziam os protagonistas.


Nos meus seis anos de Alemanha, passei a achar perfeitamente normal e aceitável que os filmes fossem todos dublados. E nunca ouvi ninguém reclamar, colocar em questão, botar reparo. Em Munique, só um cinema exibia os filmes no original. Nele era possível ouvir, por exemplo, a indublável voz do Woody Allen, que em qualquer outro idioma, convenhamos, jamais teria a mesma graça. E aqui começo a dar razão à leitora que abomina a dublagem? Sei lá!