02 de dezembro de 2015
Em Marienbad eléctrico (Caja Negra), o escritor
retoma e explica seu diálogo criativo de vários anos com a artista francesa
Dominique González-Foester.
Por Violeta Serrano (La Nacion, 23/08/2015). Tradução: Zé Pedro
Antunes.
Fotos: Soledad Aznarez y Enrique Vila-Matas.
Este livro é, sob certo aspecto, um "extra" para Não
procure a lógica em Kassel. De onde vem tua fascinação pela arte contemporânea
e como a vincula com teu ofício?
Não sei de onde vem, sempre esteve. Apenas que ultimamente se
integrou de forma muito natural em minha literatura. Estou consciente de que Marienbad
eléctrico pode ser visto como uma continuação ou como um livro adjunto a Não
procure a lógica em Kassel, mas não foi nem sequer minha a ideia de escrevê-lo.
Foi de Dominique Bourgois, minha editora francesa, que, ao saber que o Centro
Pompidou programara para este setembro uma retrospectiva de minha amiga
Dominique González-Foerster, me encarregou de escrever algo sobre a relação
artística entre a artista e eu, que falasse sobre a curiosa energia criativa
que nossa amizade havia gerado. Para mim foi importante conhecer
González-Foerster, entre outras coisas porque entrei em contato com una geração
de artistas franceses que se negaram a fecharem-se em si mesmos e situaram seus
trabalhos em uma interseção de disciplinas e de intercâmbio de ideias com as
demais artes. E eu precisava sair do excessivo confinamento de minha escritura
de gabinete.
Por que decidiu fazer um aceno à relação entre Watson e
Holmes para descrever os intercâmbios entre vocês?
É que a Dominique lhe intrigava meu trabalho de escritor,
saber como operava para me complicar tanto a vida na hora de colocar de pé um
romance. E, no meu caso, me atraía muito saber como ela fazia para manejar em
seu trabalho tantas disciplinas artísticas ao mesmo tempo. Assim começou uma
história de curiosidade mútua por nossas condutas artísticas e materiais de
trabalho, uma história que acabou me recordando o modelo de relação Holmes
& Watson, pois durante longo tempo, tanto ela como eu nos dedicamos a
investigar dissimuladamente o outro, a detectar em conversas aparentemente
acidentais o gérmen de novos projetos e a suspeitar inclusive que os diálogos
mais simples ocultavam mensagens chaves. Qualquer e-mail que trocávamos (ou
qualquer frase dita no café Bonaparte de Paris, que é onde mais nos vemos) pode
acabar se convertendo em uma mensagem de infinitas consequências. Houve dias em
que eu, ali no Bonaparte – creio que ela me fez ver isso – lembrava o primeiro
Watson, o "intrometido impertinente" de Estudo em vermelho, o
mesmo que no 221B da Baker Street se dedica a espiar seu companheiro de andar,
Holmes, e vai se convertendo em assombrada testemunha de sua impressionante
destreza para informar-se sobre quanto o rodeia.
Falemos de outra referência que está no livro: o filme O
ano passado em Marienbad de Resnais, com roteiro de Robbe-Grillet e inspirada,
a seu modo, no romance do argentino Bioy Casares, A invenção de Morel. Por
que tomou esta referência?
Em meu romance Dublinesca adiantei o que acreditava
possível ver numa instalação sobre o fim do mundo que DGF preparava para a Tate
Modern e descrevi uma orquestra que nela atuaria, e que na realidade não foi
senão fruto de um mal-entendido e de minha própria precipitada imaginação:
"E, tocando uma música indefinida entre as liteiras metálicas, haverá
alguns músicos que serão como um eco da última orquestra do Titanic e que
mesclarão instrumentos de corda com guitarras elétricas. Talvez o que
interpretem seja o desfigurado jazz do futuro, talvez um estilo híbrido que
algum dia haverá de se chamar Marienbad eléctrico".
Daí vem o título deste novo livro de estilo híbrido. Quando o
estava escrevendo descobri que o filme de era baseado em A invenção de
Morel e então me pareceu ver que minha relação com Dominique recordava a
do homem e a mulher do romance de Bioy e do filme de Resnais. É um tipo de
relação que organiza uma estranha trama que o roteirista Robbe-Grillet assim
descreveu: "A história de una comunicação e descomunicação entre dois
seres, um homem e uma mulher, um dos quais propõe e o outro resiste, e que
acabam por encontrar-se reunidos, como se desde sempre o tivessem estado".
Por certo, a ideia do hotel vazio nesse filme, a ideia do hotel completamente
deserto, por exemplo, Kubrick a transpôs para O Iluminado. E, por outro lado, a
leve trama do filme de Resnais – a mesma leve trama de Marienbad eléctrico
– foi reproduzida, com luminosas variantes, por Marguerite Duras em India
Song. E mais: a primeira sequência de Moscou contra 007, o filme de
Terence Young com James Bond, era uma piscada para filme de Resnais?
Deduz-se que as aproximações que faz no livro, de como
compreende a obra artística, que um de seus pilares deve ser, de algum modo, a
simultaneidade: estar fora e dentro a uma só vez, como no quadro de Matisse Ventana
de Collioure ao qual várias vezes alude no livro. Em que sentido você e
Dominique trabalham para conseguir essa simultaneidade?
Não sei, por sorte é ainda um mistério. Esse quadro de
Matisse tem importância no livro, porque descubro nele um efeito que costumo
buscar em meus ensaios narrativos ou em minhas narrativas ensaísticas. "Se
pude reunir em minha pintura tanto o exterior (o mar) como o interior, é porque
a atmosfera da paisagem e a de meu quarto é a mesma", disse Matisse de sua
peça de Colliure. Trata-se de uma definição que se encaixa, à perfeição, a
alguns dos trabalhos de Dominique, e também a alguns dos meus onde a separação
entre interior e exterior – entre meu gabinete (minha mente) e a rua (o
exterior), para tomar um exemplo qualquer – é quase imperceptível.
No livro também fala de sua relação de amizade e criação com
o escritor Eduardo Lago, que acaba de publicar na Argentina Siempre supe
que volvería a verte, Aurora Lee, um livro que nasce precisamente de uma
conversa entre os tres: você, ele e Dominique González-Foerster. Diria que eles
dois são os autores aos quais se sente mais próximo neste período de sua
escritura?
É muito difícil, numa certa idade, que haja muitas amizades
novas, no sentido de que os amigos verdadeiros procedem sempre das etapas mais
juvenis, quando há menos interesses cruzados nas relações entre as pessoas. Sem
dúvida, me encontrei com seres como Eduardo e Dominique, com os quais tive uma
comunicação muito criativa e se converteram na última década em duas relações
fundamentais.
Qual a função das fotografias inseridas em diferentes
passagens do livro?
Pedi a González-Foerster que as escolhesse e que estivessem
relacionadas com o trabalho dela; afinal Dominique Bourgois me encarregara de
fazer um livro sobre a artista e sua obra. Pedi que fossem cinco imagens e
pensei em colocar uma legenda extraída do texto do livro para cada uma delas.
Queria que tudo, neste aspecto visual, resultasse o mais parecido possível com
um dos livros mais decisivos do século passado, Nadja de André Breton, onde
apareciam imagens de alguns lugares de Paris, imagens laterais ou residuais, e
sem dúvida fascinantes, porque davam muita vontade de ir àquela cidade da qual
o livro nos falava, mesmo que fosse só para ver se era verdade que não havia
nada mais interessante em Paris do que aqueles desfocados (mágicos, dizia
Breton) lugares.
Em um momento do livro, você joga com a visão de Rimbaud como
a do Minotauro no quarto 19 e, ao mesmo tempo, aproveita para afirmar que sem o
outro nada existe. Ao final do livro, volta a esse quarto, ao que Dominique tem
pensado fazer com ele em sua mostra que se inaugura em setembro em Paris, no
Beaubourg. Poderia explicar por que a escolha destes personagens e desta
estrutura para escrever um livro que é na verdade uma volta do parafuso sobre o
acaso produtivo que funciona entre Dominique e você?
Este setembro Marienbad eléctrico surge na Argentina,
França e México ao mesmo tempo. A Espanha decidiu esperar. Já não mais é uma
brincadeira que eu fazia, disso me dou conta, estou a caminho de me tornar um
escritor franco-argentino-mexicano. Se acabasse acontecendo, seria algo que
teria uma relação muito coerente com minha obra. O livro será publicado em
setembro e sua trama prossegue na própria vida, porque DGF me assegura que, em
sua retrospectiva do Beaubourg, estará esse quarto único de que falo no livro e
do qual me garante que só eu terei a chave. Veremos. Watson permanece à espera.
Você diz: "Só vivemos realmente à medida que lemos nossa
história, transcendendo-a. Por que só a literatura é verdadeiramente
transcendente". Concebe a literatura como uma necessidade, não somente
pessoal, mas humana?
Alguns pensam que os livros são entretenimento, mas são muito
mais. Ler é a melhor forma que a vida nos oferece para que possamos ser
plenamente humanos.
A arte é uma luz desconhecida, um clarão em meio à tormenta
que não compreendemos, mas nos faz tremer, e do qual necessitamos para saber
que estamos vivos? Isso é Marienbad eléctrico, uma reflexão sobre esse
momento de revelação que é a arte?
A arte é o que acontece, o que esta ocorrendo neste momento.
Depende de nós, sempre. E a arte, evidentemente, é epifania, emoção do momento,
saber olhar para o tempo através das gotas de chuva, ou através de um tecido
desgastado que deixa ver de vez em quando o leste do éden.